Por: Jânio Santos de Oliveira
Pastor e professor da Igreja evangélica Assembléia de Deus em Santa Cruz da Serra
Pastor Presidente: Eliseu Cadena
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Meus amados e queridos irmãos em Cristo Jesus, a Paz do Senhor!
As 10 doutrinas da Teologia Sistemática.
Sumário geral
Capítulo 1
Bibliologia — a doutrina das Escrituras
Capítulo 2
Teologia — a doutrina de Deus
Capítulo 3
Cristologia — a doutrina de Cristo
Capítulo 4
Pneumatologia — a doutrina do Espírito Santo
Capítulo 5
Antropologia — a doutrina do homem
Capítulo 6
Capítulo 7
Eclesiologia — a doutrina da Igreja
Capítulo 8
Angelologia — a doutrina dos Anjos
Capítulo 9
Hamartiologia - a doutrina do pecado
Capítulo 10
Escatologia — a doutrina das últimas coisas
Capítulo 7 Doutrina da Igreja
O ensino das Escrituras sobre a Igreja é apresentado em linguagem clara como todas as demais doutrinas; contudo, a concepção de cristãos, até professos, sobre o assunto, é às vezes muito indefinido e vago. Isso, sem dúvida, deve-se ao fato de que, segundo o emprego humano, o termo igreja detém numerosos e variados significados e concepção.
O termo igreja é empregado para se fazer distinção entre as pessoas religiosas e não-religiosas. E usado no sentido denominacional, para se fazer distinção entre grupos cristãos organizados, como: Igreja Presbiteriana, Igreja Metodista ou Igreja Católica Romana.
E usado em relação a edifícios, designando um local de reunião em que os cristãos se reúnem para adorar. Entretanto, esse emprego do termo com sentido variado tende a obscurecer o verdadeiro significado do vocábulo bíblico. Somente quando chegamos ao uso bíblico do termo, é que verificamos que essa dificuldade desaparece.
O assunto analisado ao longo desta Lição, portanto, diz respeito à doutrina da igreja, segundo a concepção das Sagradas Escrituras.
Uma comunidade relevante no mundo.
O que mais chama atenção na comunidade dos crentes primitivos é que eles “caíam na graça de todo o povo” (At 2.47). Havia relevância em sua vida cristã de tal modo que a sua mensagem penetrava e fazia diferença, inclusive na cúpula religiosa do judaísmo (At 6.7). As propostas da primeira comunidade cristã produziam impacto na sociedade e a colocavam em posição destacada. Quais foram, todavia, as razões dessa relevância?
1) Havia o compromisso de vivenciar a fé. Eles se dispunham a estar juntos todos os dias, em comunidade, partilhando as experiências da vida cristã. Grande parte dos problemas do movimento evangélico se deve â falta de relevância e crescente nominalismo. A medida que cresce e, em muitos casos, se distancia dos “marcos antigos”, incorpora conversões duvidosas e não transmite aos filhos da geração que chega a mesma visão do compromisso. Daí o aumento gradual de cristãos nominais como um dado a mais com o qual a igreja evangélica precisa lidar em sua caminhada histórica.
2) O compromisso da igreja primitiva gerava a prática que fez a diferença entre a nova religião cristã e o judaísmo formal e legalista. O povo via que entre os cristãos as propostas não ficavam apenas nos discursos, mas tinham sentido prático na vida de cada um. O que ensinavam era demonstrado pelo exemplo.
A cidade de Jerusalém foi literalmente revolucionada (At 4.1-31).
Entretanto, que importância há em se falar da salvação, se não há interesse em evangelizar?
Que valor há em pregar sobre missões, se não há ousadia em orar, enviar e contribuir?
De que adianta falar em amor, se a atitude demonstra um coração egoísta?
De que vale apregoar a comunhão entre os santos, se a prática revela discriminação e preconceito?
De que serve apregoar a solidariedade, se não há disposição para socorrer os necessitados?
Cada comunidade de fiéis, para ser relevante em sua área de atuação, necessita de que a vivência de sua fé corresponda ao que diz e ensina.
Uma comunidade relevante nos resultados.
O mais importante é que a prática tomava a comunhão cristã em Jerusalém relevante nos resultados (At 2.47; At 5.14-16).
1) O tipo de vida solidária adotado, como fruto da koinonia, era fator de atração para a sociedade.
2) A nova mensagem trazida pelo evangelho fazia sentido na vida dos ouvintes.
3) Havia correspondência entre o que a comunidade ensinava e vivia.
4) Em pouco tempo a cidade de Jerusalém foi alcançada com a nova doutrina, pois os crentes não cessavam de anunciar a Cristo em toda parte.
5) Todos os dias havia genuínas conversões em todos os estratos sociais da população, inclusive entre os líderes religiosos.
6) As intervenções sobrenaturais divinas eram tantas que os enfermos trazidos à presença dos apóstolos eram curados.
A vida em comunidade, do ponto de vista da Palavra de Deus, é parte intrínseca da vida da igreja local. Ali os seus membros podem expressar a sua fé e dar sentido a ela através do exercício da comunhão bíblica, que há de torná-los um povo relevante no compromisso, na prática e nos resultados diante da sociedade. E a ação legítima da Igreja como agente do Reino de Deus na presente era.
A igreja e o Reino de Deus Aqui chegamos a outro ponto importante para melhor compreendermos o papel da igreja no mundo: é a sua relação com o Reino de Deus. Esse é um tema muito restrito aos círculos acadêmicos. Pouco se ensina aos crentes, de maneira geral, acerca da perspectiva bíblica em que a igreja é vista quanto ao Reino de Deus. No entanto, é ela que expressa os princípios do Reino na presente era e introduz os salvos nessa dimensão do governo de Deus. Assim sendo, é primordial conhecer o que a Bíblia diz sobre o Remo de Deus para que possamos agir como seus verdadeiros súditos na luta contra o império das trevas. Definição de Reino de Deus. Observa-se, inicialmente, que o Reino de Deus foi o cerne da mensagem pregada não só por João Batista (o último dos profetas segundo o molde veterotestamentário), mas principalmente por Jesus durante o seu ministério terreno.
Os Evangelhos sinóticos são extremamente enfáticos ao determinar as boas novas trazidas por Cristo como o anúncio da chegada do Remo de Deus (Mt 3.1,2; Mc 1.14,15; Lc 18.16,17).
O Reino de Deus foi também o foco da proclamação da igreja nascente, conforme registra o livro de Atos. Todas as vezes que o autor menciona a pregação apostólica, a centralidade da mensagem cristã está no Reino de Deus (At 8.12; 14.22; 19.8; 20.25; 28.23,31). Alguns teólogos distinguem as expressões “Reino dos céus” (mencionada 34 vezes em Mateus) e “Reino de Deus”, vinculando a primeira ao futuro estabelecimento do reino milenial.
No entanto, uma exegese correta há de considerar ambas sinônimas, pelo menos por duas razões
Enquanto Mateus utiliza “Reino dos céus”, os outros, integrantes dos sinóticos, substituem a mesma expressão, dentro do mesmo contexto, por “Reino de Deus” (Mt 4 .I2 -I7 ; Mc 1.14-20; M t 19.13-15 com M c 10.13-16; Mt 19.16-26 com Mc 10.17-31). 2) Em diversos casos, “Reino dos céus” aparece em Mateus com a ideia de algo já presente na História, e não apenas em sentido escatológico (Mt 4.17; 10.1-8).
Feitas essas considerações, o Reino de Deus pode ser definido como o domínio eterno de Deus em todas as eras, desde o eterno passado ao eterno futuro, exercendo a sua soberania sobre o Universo, intervindo na História para conduzi-la ao ápice a restauração de todas as coisas e “revelando-se com poder na execução de suas obras”. Tem a ver com o seu governo soberano, que a Bíblia retrata de forma magistral com o fato de que até os cabelos de nossa “cabeça estão todos contados” (Mt 10.29,30). O Reino de Deus tem uma dimensão presente, que se configura no cumprimento em Cristo de todas as promessas messiânicas do Antigo Testamento.
A expressão “é chegado”, que aparece tanto em Mateus 4.17 e 12.28, segundo pensam os eruditos, denota a ideia de “presença real”, agora, e não de proximidade, como algo para o futuro. Por conseguinte, a presença pessoal do Messias na História implica a presença efetiva do Reino de Deus entre os homens.
No entanto, não se pode esquecer-se do caráter escatológico do Reino de Deus. Será o tempo no qual se cumprirá a profecia de Daniel em que os reinos deste mundo serão destruídos, e o mal, aniquilado. Restabelecer-se-á a comunhão perfeita com Deus, e o Senhor reinará com justiça para sempre, incluso aí o período milenar (Dn 7.13,14,18,27). N a presente manifestação do Reino de Deus ser salvo implica libertação do poder do pecado; mas, em sua dimensão escatológica, traduz a ideia da redenção do corpo “o livramento da mortalidade “em que o crente redimido assemelhar-se-á ao próprio Senhor em sua imortalidade (I Co 15.20-25,42-57). Será também a época em que a comunhão restaurada em plenitude terá como símbolo maior o banquete entre Cristo e a Igreja (Lc 13.22-29; Mc 14.25).
Agente do Reino de Deus, O Reino de Deus sobrepuja a esfera de ação da igreja, pois, como se afirmou anteriormente, tem a ver com a soberania de Deus sobre todas as eras. Todavia, assim como o povo de Israel constituía-se na congregação de Deus no Antigo Testamento, com a responsabilidade de manifestar diante das nações pagãs o conteúdo do Reino de Deus, igualmente foi a Igreja comissionada por Deus para a mesma finalidade. Por viver a maior parte de sua história sob o domínio de outros povos, Israel não soube interpretar as profecias bíblicas acerca do Reino. Essa herança cultural serviu de ambiente propício à proliferação da chamada literatura apocalíptica judaica, cuja essência vislumbrava um juízo que libertasse a nação da opressão política, o qual não era o conteúdo da proclamação do Remo de Deus trazida por Jesus.
Razão pela qual Ele foi rejeitado pelos seus contemporâneos.
Com a rejeição de Jesus pelos judeus (Jo 1.12), a implantação do Reino na Terra tornou necessária a existência da Igreja para que a soberania divina mediante o ministério de Cristo confrontasse os indivíduos a "manifestarem uma resposta positiva, introduzindo-os em um novo grupo de comunhão” (Mt 21.42,43). Como bem afirmou um respeitado erudito, “a Igreja não é senão o resultado da vinda do Reino de Deus ao mundo por intermédio da missão de Jesus Cristo ”. A igreja, portanto, não é o Reino de Deus em sua plenitude, porém a sua expressão entre os homens. Como igreja, ela não proclama a si mesma, e sim o Reino de Deus (At 14.22; I Ts 2.12; Cl 1.13,14). A igreja não é um fim, mas o instrumento que apresenta ao mundo o Senhor do Remo e introduz em suas fronteiras os seres humanos arrancados do império das trevas. Aqui e agora, em seu confronto com as forças do mal, antecipa as características da vida abundante e da glória divina a serem integralmente experimentadas na dimensão escatológica do Reino de Deus. Por conseguinte, a igreja realiza as obras do Reino mediante a proclamação do evangelho de poder que lhe foi outorgado por Cristo (Rm I . I 6).
A mesma instrumentalidade que operou em Jesus, durante o seu ministério terreno, está presente na vida da igreja para que os milagres se realizem, as boas novas cheguem aos confins da Terra e ela possa confrontar o orgulho, a falsidade e o egoísmo disseminado pelo reino das trevas.
E assim manifestar em sua existência as qualidades do fruto do Espírito (Gl 5.22), que antecipam a verdadeira natureza da era vindoura. A mensagem do Reino de Deus.
A porta de entrada para o Reino de Deus é o arrependimento do pecador e sua fé no Salvador segundo a mensagem proclamada pelo evangelho (Mc I. I 5).
Talvez isso tenha sido o principal motivo do conflito entre Jesus e os representantes da lei, pois a expectativa dos tais era fundamentada no legalismo oriundo de interpretações exacerbadas e equivocadas que nem eles mesmos podiam cumprir. O Mestre os condenou de forma dura e radical: “Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que fechais aos homens o Reino dos céus, e nem vós entrais, nem deixais entrar aos que estão entrando” (Mt 23.13).
A igreja nada precisa acrescentar à proclamação messiânica. O arrependimento e a fé atitudes que cabem ao homem, aliados à graça salvadora de Deus, sustentam a mensagem que abre a porta do Reino de Deus à humanidade. Há, todavia, um conteúdo ético na mensagem do Reino de Deus. Ele transparece principalmente no sermão da montanha, que, segundo os eruditos, “contém toda a essência da doutrina de Cristo”. Enquanto os fariseus impunham a ética como resultado da obediência à lei, o Senhor a reconhece como provindo de sua própria Pessoa “e do Reino de Deus, que irrompeu na História por seu intermédio”.
Analisada à luz do texto, a ética do sermão do monte é absoluta e implica o tipo de vida que o Senhor deseja para os súditos do Reino. Tivesse tal ética caráter legalista, ninguém seria capaz de cumpri-la integralmente na era presente, pois estaria contrariando o ensino bíblico sobre a imperfeição do crente e a advertência de que ele pode vir a pecar, ainda que a Palavra de Deus ordene o contrário. Portanto, esse conteúdo ético só será experimentado “de modo perfeito” na dimensão escatológica do Reino de Deus.
Todavia, é o ideal permanente de todo o crente que adentrou à esfera do Remo de Deus, através da igreja, onde submete sua vida constantemente ao poder do Espírito Santo, que o faz caminhar em busca da perfeição, como fazia o apóstolo Paulo (Fp 3.14). Assim, a igreja em sua peregrinação histórica expressa a realidade presente do Reino de Deus e aponta para as dimensões da era vindoura, onde ele será experimentado em toda a sua glória e esplendor. Enquanto aguardamos esta bem-aventurada esperança, podemos também conhecer um pouco da natureza da Igreja através dos símbolos empregados pelas Escrituras para descrevê-la.
I. A Igreja e seus símbolos.
São várias as metáforas para ilustrar a natureza da Igreja, de seus membros em particular e de seu relacionamento com Cristo. Este é um recurso de linguagem que traz luz ao nosso entendimento e ajuda na apreensão dos conceitos expostos. O simbolismo é uma das riquezas da literatura bíblica, como as descritas no Evangelho de João. Ali, entre outras figuras de linguagem, o Senhor é apresentado como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (1.29); a porta de entrada ao pecador arrependido à dimensão da fé cristã (10.9); o Bom Pastor (10. 11) , que cuida com zelo e amor de suas ovelhas; e a videira verdadeira (I5 1), que nutre os ramos com a seiva do Espírito. Entre as metáforas que tratam da Igreja, há três que melhor contextualizam a visão atual de sua missão terrena: Noiva, Templo e Corpo.
A Igreja como Noiva de Cristo. Esta primeira alusão remete à importância que as Escrituras dão ao matrimônio como instituição divina, quando o compara ao relacionamento entre Cristo e a Igreja (Ef 5.24-27). E primordial na Igreja fortalecer o casamento; isso porque há uma ação em curso, orquestrada pelo Maligno, para desgastá-lo por ser, em primeiro lugar, a estratégia que melhor serve ao Inimigo no seu famigerado propósito de tentar destruir o plano de Deus para o homem. Em segundo lugar, o desgaste do casamento desmoraliza a instituição que melhor representa o tipo de comunhão que Cristo mantém com a sua Noiva, no presente, e a perspectiva da vida que ambos desfrutarão na era vindoura (Ap 19.7,8). Outra lição desse rico simbolismo é a da sujeição da Igreja a Cristo (Ef 5.24). O apóstolo Paulo a usa para exemplificar a mesma atitude da mulher para com o marido.
No entanto, a ideia aqui não é a de uma sujeição imposta pela força ou por uma decisão unilateral e legalista da esposa. É fruto do amor intenso dedicado pelo esposo, que produz nela profundo sentimento de afeto, resultando no reconhecimento espontâneo de sua sujeição posicionai. E assim a relação de Cristo com a sua noiva. O amor que Ele lhe devota é tal como demonstrado no ato da redenção que ela se sente espontaneamente constrangida a ser-lhe eternamente fiel e a viver sob sua abençoada liderança (2 Co 5.14,15).
Outro detalhe expresso no símbolo é que a pureza da Igreja como Noiva resulta da entrega do Senhor por ela (Ef 5.26,27). E Ele quem a santifica, purifica e a torna imaculada e irrepreensível. Não é um ato intrínseco da Igreja, que, por si mesma, possa desenvolver essas qualidades da vida cristã. Ela depende de estar abrigada sob o amor do noivo e ter a noção exata da grande compaixão implícita nessa entrega. Só assim poderá viver essas características e apresentar-se, no dia das Bodas, como Igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante! Esse é o comportamento que Deus espera dos cônjuges. O amor do marido pela esposa deve evidenciar-se de tal maneira, não só por palavras, mas acima de tudo por atos. Com isso, a mulher se sente prazerosamente motivada a manter a sua pureza interior, bem como as suas qualidades morais e físicas, para que ambos tenham, por toda a vida, plena satisfação na união conjugal. Assim, estarão dando um testemunho sem palavras, na dimensão humana, do que representa, no nível mais sublime, a comunhão entre Cristo e a Igreja (Ef 5.32). A Igreja como Templo de Deus. A Igreja como Templo de Deus traz a ideia subjacente da construção de um edifício que se ergue sob as rigorosas normas da engenharia “bem ajustado” (Ef 2.21).
Aqui se evidenciam duas coisas:
Quem normatiza e aplica os detalhes técnicos da obra é o engenheiro responsável; este princípio denota a mesma responsabilidade no trato de Cristo com a Igreja. As normas partem dEle e já estão reveladas na Bíblia, não podendo ser substituídas por suposições humanas, sob pena de fazer ruir todo o edifício (Cl 2.20-23).
2) A Igreja foi projetada como lugar da habitação do trono de Deus, que, mediante o Espírito Santo, envolve-se em toda a sua peregrinação histórica. O projeto, portanto, pertence ao Pai; a execução, ao Filho; e o acompanhamento, ao Espírito Santo (Ef 3.9; Mt 16.18; Jo 14.16,17,26). Outro desdobramento cabível aqui é a doutrina da transcendência e da imanência de Deus.
Em sua transcendentalidade, Deus é chamado de Altíssimo, haja vista habitar “em um alto e santo lugar”. Todavia, ao mesmo tempo em que o Céu dos céus é a sua eterna morada, identifica-se também como o Deus imanente, que habita “com o contrito e abatido de coração” (Is 57.15). Deus é aquEle que, durante o dia, acompanhava Israel através de uma nuvem e, durante a noite, se fazia presente através de uma coluna de fogo. Hoje, sua presença é sentida na igreja mediante o poder do Espírito Santo. Mais um conceito implícito no símbolo do Templo é o de que faz parte da natureza essencial da igreja adorar a Deus. Este é o sentido do verbo “cultuar”. Nesse caso, a adoração não deve passar para o plano secundário ou mesmo terciário, tampouco esquecida. Deus deve se destacar no culto ocupam e ser o centro das atenções.
No culto a Deus deve haver reverência, mas esta não deve ser confundida com formalismo. A Noiva do Cordeiro é também o Templo de Deus, no sentido coletivo, e deve adorá-lo na beleza de sua santidade. Desse modo, o Espírito Santo terá liberdade para atuar (I Co 14.26-33). A Igreja como Corpo de Cristo. A Igreja é também um Corpo. Este simbolismo traduz a ideia de que são diversos órgãos e muitos membros, mas todos trabalham de forma orgânica e harmônica, interligados, em benefício do Corpo de Cristo ( I Co 12.12). Vale a pena reiterar: ninguém trabalha em favor de si. Qualquer ação de um órgão ou membro em corpo saudável está relacionada com toda a estrutura orgânica que sustenta a vida. E acima está a Cabeça o cérebro no comando. Assim são as igrejas. Elas somam milhões de membros no mundo. Quando todos cumprem a sua parte, elas se beneficiam, mas, se algum de seus membros está enfermo espiritualmente e não é logo restaurado, afeta o “corpo”. Haja vista inúmeros exemplos que promovem escândalos e trazem má fama ao povo de Deus. E responsabilidade de todos os crentes trabalharem de forma orgânica e harmônica, interligados, em favor do crescimento, saúde e fortalecimento da igreja, tendo Cristo como Cabeça, na liderança (Ef 1.22,23).
Sem nenhum exagero, a igreja atual precisa ser mais “corpo” e menos “indivíduos”. Todavia, esta ideia não anula a utilidade de cada membro em particular. Todos cumprem uma atividade regular e indispensável no processo da vida. Se algum deles, por qualquer motivo, para de trabalhar, o “corpo” ressente-se de sua inatividade. Essa é visão que norteia a nossa presença na Terra (I Co 12.14,27).
Muitos crentes, por não entenderem corretamente esse princípio, sentem-se inúteis e não se envolvem no serviço cristão. Mas, se todos se impregnarem do senso de utilidade, a vida de oração será aprofundada, não faltarão recursos para a expansão do Reino, a evangelização será mais rápida, a obra missionária não andará a passos lentos, a unidade não se constituirá em utopia, e a igreja terá relevância no mundo (I Co 15.58). Como a Noiva de Cristo, a Igreja tem o Senhor como fonte de sua pureza espiritual. Como Templo de Deus, ela é o lugar santo da habitação dEle na Terra e tem o compromisso de permanentemente adorá-lo. Como Corpo de Cristo, bem ajustado, cada membro cumpre com alegria a sua responsabilidade em benefício do Corpo. Assim, a igreja vive a plena espiritualidade no mundo.
II. A Igreja ε a espiritualidade
O grande desafio da igreja, agora, é como viver a sua espiritualidade, no dia-a-dia da vida cristã, com as suas múltiplas circunstâncias. Ocorre que, em virtude da relação conflituosa entre a carne e o espírito, da falta de uma visão objetiva da mesma graça como fonte de santificação e da ausência de equilíbrio entre a esperança do mundo vindouro e a vida aqui e agora, surgem graves desequilíbrios na caminhada histórica da igreja. No primeiro caso, a carne opta pelo hedonismo, enquanto o espírito anseia pela espiritualidade.
No segundo, a tendência é impor a santificação através do legalismo e, com isso, anular o poder da graça como sustento da caminhada cristã.
No terceiro, ora enfoca-se a esperança da vida eterna como algo que exclui qualquer compromisso com a vida no mundo, ora leva-se ao extremo a visão do aqui e agora, anulando-se a santa expectativa do glorioso e definitivo estabelecimento do Reino de Deus na História. A verdade, porém, é que não há como fugir dessas questões. Elas afetam diretamente não só a maneira como se lida com o viver cotidiano, mas também a forma como se estabelecem os horizontes.
Que caminhos correspondem aos princípios bíblicos para uma vida de espiritualidade?
Em que consiste o papel da igreja, enquanto no mundo, diante de temas como justiça social, cidadania, vida profissional e áreas afins, principalmente nesta era pós-moderna em que prevalece a visão relativista?
Como interagir com a sociedade sem comprometer os valores do Reino de Deus, sem deixar de influir em todos os segmentos?
A igreja e a dimensão da espiritualidade.
Saber em que consiste a verdadeira espiritualidade é o ponto de partida para que a igreja tenha o correto posicionamento diante de tudo quanto se relaciona à vida terrena.
Mas, o que significa isso?
1) O estereótipo pentecostal enfatiza unilateralmente as expressões de alegria emocional e as supostas manifestações do Espírito nos cultos como sinônimos de espiritualidade.
2) O tradicionalista, no outro extremo, valoriza os seus aparentes temor reverente e a piedade.
3) O estruturalista pressupõe que ser espiritual é interessar-se pelas transformações das estruturas sociais. Onde está a verdade?
O apóstolo Paulo define a espiritualidade em Romanos I2 .I como um sacrifício vivo no altar de Deus. E prestar culto ao Criador. É mais do que simplesmente a prática litúrgica, a compenetração piedosa, a celebração coletiva nas reuniões da igreja. É entrega plena do ser espírito, alma e corpo ao serviço do Altíssimo. E a certeza de que tudo quanto se faz é para Deus sob a perspectiva da adoração consciente em todas as coisas, mesmo naquelas aparentemente sem importância alguma (I Co 10.31). Bem dizia o pastor e teólogo João de Oliveira: Adora-se ao Senhor até no ato de remover urna casca de banana da calçada.
Tal gesto impede que alguém criado à imagem e semelhança de Deus, ao passar por ali} venha a acidentar-se. Aduz-se, portanto, que a espiritualidade não é estanque, compartimentada, para ser vivida apenas numa dimensão. Ela engloba toda a vida. Não há como estabelecer, do ponto de vista da verdade teológica, qualquer linha divisória entre o sagrado e o secular, que enseje tratar cada uma das situações de maneira distinta. Não há paredes para a vida cristã, como se houvesse um tipo de atitude exclusivo lá para dentro, no âmbito interno da igreja, e outro cá para fora, “Em todo o tempo”, diz a Bíblia (Ec 9.8). Espiritualidade que se expressa apenas nos aparentes limites do culto coletivo é hipocrisia. E farisaísmo. E sal dentro do saleiro. É luz dentro da redoma. Não se percebem seus efeitos na sociedade.
Quando, no sermão do monte, o Mestre qualifica os cristãos como sal da terra e luz do mundo está implícita uma espiritualidade plena, sem fronteiras, que alcança todas as áreas. Em outras palavras, todos os atos do cristão a denotam (Mt 5.13-16). A igreja, a espiritualidade e a justiça social. Se a espiritualidade é o pressuposto da vida da igreja em qualquer circunstância, o que se espera dela, por exemplo, em relação à justiça social? A discussão, aqui, não se dá no campo ideológico, visto que provado está as ideologias carregam a mesma semente de egoísmo que perpassa a raça humana desde o princípio. O foco está em como contribuir, em meio à corrupção do gênero, para que haja menos desigualdades sociais, sem que isso signifique, de um lado, a supressão da propriedade individual, pois o direito a ela tem fundamento bíblico, e de outro, a posse de riquezas sem reconhecer a sua função social, também embasada em princípios escriturísticos.
Cabe observar que, no Antigo Testamento, há perfeito equilíbrio entre ambas as posições. O Pentateuco preserva o direito à propriedade, mas ao mesmo tempo dá a ela função social através de leis específicas referentes ao uso da terra e ao pobre, com o objetivo de lhe permitir acesso aos meios de sobrevivência. Já os profetas condenam com veemência a posse desmedida que satisfaz o próprio umbigo, mas leva a pessoa a esquecer-se do bem-estar do próximo. No Novo Testamento, nos primórdios da igreja, Ananias e Safira são julgados não por trazerem aos pés dos apóstolos apenas a metade do valor da propriedade vendida, mas pela motivação errada, que os leva a mentirem ao Espírito Santo. Nenhum erro haveria em reter a outra metade, pois o apostolado não fez imposição alguma sobre isso.
Houve, sim, um movimento voluntário entre os crentes primitivos que, movidos pela verdadeira espiritualidade, se dispuseram a abrir mão de seus bens em favor de toda a comunidade. Percebe-se, portanto, que o casal agiu por egoísmo, para obter algum reconhecimento humano, não havendo mérito espiritual algum em sua devoção. O que se deseja afirmar, aqui, é a legitimidade de o cristão possuir bens materiais sem que, necessariamente, tenha de abrir mão deles para cumprir a verdadeira espiritualidade.
Todavia, o outro lado da moeda revela que é preciso estar consciente de que tudo quanto possui é para a glória de Deus mediante a disposição de usar o que tem para o bem-estar do próximo. Esse é o contexto em que Tiago se reporta aos empresários cristãos que espoliam os empregados. Fica bastante claro no dizer apostólico que lhes cabe expressar a verdadeira espiritualidade através de remuneração justa que ofereça aos trabalhadores condições de vida condizentes com suas necessidades pessoais e familiares (Tg 5.1-6). Mas há também o reverso. Quando Paulo menciona os cristãos que serviam como servos na cultura de então, admoesta-os a servirem como se fosse ao Senhor, ou seja, com a máxima dedicação (Cl 2.22.23). Os funcionários cristãos de hoje, movidos pela mesma espiritualidade, exercem a profissão como se estivessem trabalhando para o próprio Deus. Não podem ser espoliados, mas também não surrupiam o tempo pelo qual são justamente pagos. Portanto, a não conformação com o mundo, de que falou o apóstolo Paulo em Romanos 12.2, não tem apenas implicações quanto aos valores morais, mas abarca também o inconformismo com toda sorte de injustiça, que é, em suma, o resultado da entrada do pecado no mundo. Quem reconhece a vida como uma dádiva da misericórdia de Deus e se compromete em entregá-la incondicionalmente à soberania divina, no altar do sacrifício, não folga com o individualismo egocêntrico, mas interessa-se alegremente pelo bem comum, uma forma de manifestação da espiritualidade. A igreja; a espiritualidade e a cidadania. Esta é outra área em que, ainda, há pouca consciência a respeito.
A ideia de uma igreja que apregoa uma vida cristã compartimentada enseja posicionamentos duvidosos, nos quais transparece não haver qualquer compromisso com o aqui e agora. A máxima para justificar tais posturas é a de que “o mundo vai de mal a pior” e nada é possível fazer para melhorar este quadro. Sob esse ponto de vista, resta tão-somente aguardar a bem-aventurada esperança e alienar-se da realidade em volta. Mas aqueles que assim pensam continuam comprando, vendendo, construindo casas. A máxima só vale quando se trata do envolvimento com as questões sociais, políticas e civis que afetam a sociedade. Essa é uma meia-verdade.
É óbvio que a esperança do cristão é o mundo vindouro. A expectativa do estabelecimento definitivo do Reino de Deus na história nutre a fé de todos que professamos o nome de Cristo. Mas enquanto essa época não chega, cabe a cada crente viver na presente era a espiritualidade do Reino e todo o seu ideal descrito no sermão do monte.
A famosa resposta de Jesus aos fariseus: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” pode ser assim parafraseada: “Cumpra os seus deveres de cidadãos, e cumpra os seus deveres para com Deus”. Em outras palavras, duas faces de uma mesma moeda. O próprio Paulo apelou para a cidadania romana no episódio em que ele e Silas foram arbitrariamente presos em Filipos (At 16.35-40). Como já disse este autor, em um de seus artigos: A vinda de Cristo é certeza de descanso e segurança, e não instrumento para impor medo e manipular os fiéis.
E mensagem positiva, e não negativa. E assegurar-se de que não é necessário entrar em pânico quanto ao amanhã. E ter como certo não precisar sair atrás de sensacionalismo, da especulação escatológica, à procura de ‘‘chifre em cabeça de cavalo”, com achados absurdos que não passam de fruto da imaginação criadora das pessoas. E ter a tranquilidade de não se alienar do mundo e viver segundo a mesma perspectiva de Cristo, que disse: “Meu pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando”. Assim, a verdadeira espiritualidade não dá as costas ao exercício da cidadania. Quando se fala em cidadania logo vem à mente a ideia de cargos eletivos mediante os quais os eleitos chegam ao legislativo e ao executivo. E óbvio que essa é uma forma legítima de participação. O mandato de governar a terra foi dado pelo próprio Deus ao homem no ato da criação (Gn 1.26-31).
Mas o exercício da cidadania vai muito além disso. Começa no bairro onde as pessoas vivem, até mesmo em ações que a própria igreja local desenvolve. Promover mutirões em que os membros, nas suas mais diferentes profissões, são acionados para prestar a sua ajuda à comunidade em determinado dia não só é uma atitude cidadã, com também se constitui em excelente via para a evangelização. Incentivá-los a participar das associações de moradores, das reuniões de pais de alunos e de outros movimentos legítimos da sociedade organizada permite que exerçam a espiritualidade onde a presença do sal e da luz é extremamente vital para a tomada de decisões importantes. Mas a postura cidadã não se resume apenas a esses aspectos. Ela transparece nos metrôs, trens e ônibus, quando os mais novos dão lugar às pessoas da terceira idade, e aqueles que não enfrentam nenhuma dificuldade abrem mão de seus assentos para as gestantes, as pessoas enfermas e os deficientes físicos. Ela transparece nas comunidades carentes, onde os moradores conscientes não jogam o lixo nas encostas, nem nos rios, nem o deixam espalhado nas vias públicas. Ela transparece nas ruas, quando os motoristas respeitam as faixas de pedestres, e as pessoas ajudam a quem tem dificuldade de atravessá-las. E aí que a espiritualidade se manifesta na dimensão mais humana da cidadania. Quando tais gestos têm origem no relacionamento com Deus através do altar do sacrifício, pela visão correta de que tudo quanto o ser humano faz só encontra sentido no Altíssimo (Sl 73.25), representam então a celebração da glória divina, o culto contínuo, 24 horas por dia, Aquele que tem o domínio sobre o Universo. Isso é espiritualidade.
A perspectiva pela qual todos os atos do crente devem ser praticados. Sim, isto é a igreja atuante no mundo. Sem essa premissa, incorre-se na ausência do amor, a primeira qualidade do fruto do Espírito (Gl 5.22), o que significa que qualquer ação está sendo feita sob motivação errada. A igreja, a espiritualidade e0 pós-modernismo. Finalmente, como viver a espiritualidade no mundo pós-moderno em que tudo é relativizado, onde o certo para um pode ser errado para outro? Convém ficar bem claro que interagir com a sociedade, nesta época da história, não significa que ela nutra simpatia pelas posições da igreja. Ao contrário, a cosmovisão prevalecente no mundo tem como fonte o naturalismo, que exclui a ideia do Deus criador, e permite a partir daí a desconstrução de todos os princípios que caracterizam a cultura judaico-crístã.
Charles Colson, em seu livro E Agora, Como Viveremos? Trata muito bem da questão ao afirmar, na verdade, a existência de um conflito permanente entre cosmovisões que só terá conclusão ao final da presente era, com a restauração de todas as coisas. Todavia, não cabe à igreja fazer como o avestruz e enterrar a cabeça na areia enquanto as horas passam. Muitos hão que entregam o tempo presente ao Diabo e se esquecem de que este tempo pertence à igreja. Haverá, sim, uma época futura, conhecida como a Grande Tribulação, em que o mundo experimentará a ira de Deus, a ira do Cordeiro, em que Satanás terá permissão divina para dominar as ações na Terra. Mas a História ainda não chegou lá.
A igreja tem, hoje, a oportunidade ímpar de influir em todos os segmentos para que se preservem as condições de vida, sob todos os aspectos, até que todas as intervenções históricas de Deus se realizem.
1) Neste mundo pós-moderno, a verdadeira espiritualidade não pode perder o seu paradigma, a centralidade de sua vivência quotidiana. Esta repousa em Deus, através de Jesus Cristo, onde está todo o significado da vida. Agostinho definiu bem isso ao afirmar: “Criaste-nos para ti, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em ti”. Não importa que o mundo pense diferente. Deus é o condutor da história e para Ele devem convergir todas as realizações do homem.
2) E preciso estar consciente de que a verdadeira espiritualidade se expressa quando se busca viver esses princípios em todas as dimensões da vida em comunidade. Eles não podem estar confinados às quatro paredes do templo. Repita-se: não há vida cristã estanque. As pesquisas mostram, por exemplo, que filhos criados em famílias saudáveis e bem estruturadas são menos propensos às drogas e, consequentemente, ao crime. Por que não lutar, então, para que os homens públicos não subvertam esse princípio e mantenham incólumes as leis que estabelecem a família tal como a Bíblia ensina
3) Deus nos pôs no mundo não para ficar a reboque, mas para, como Igreja, fazer a história. Vamos fazê-la bem-feita e deixar um bom rastro para aqueles que nos seguem. Um bairro, uma cidade, um estado ou um país que crescem à sombra destas verdades terão menos violência, melhor educação e grande prosperidade. Celebremos a glória de Deus nos templos, através de expressões de alegria e louvor ao Senhor, mas vivamos a espiritualidade verdadeira em todas as dimensões de nossa vida. Isso se dá através mediante o permanente exercício da disciplina cristã.
III. A Igreja e a disciplina
O ambiente que cerca a igreja, nos dias de hoje, é diametralmente distinto do contexto da igreja primitiva. Naquela época, mesmo fora dos limites da fé cristã, havia o pressuposto de valores universais como norma para a conduta humana. Os questionamentos não tinham a dimensão atual. Hoje, ao contrário, predomina a visão relativista, particular, pessoal, que não admite nem por hipótese a ideia de que existam verdades absolutas. Não passa pela cabeça do homem pós-moderno, de modo geral, pensar na existência de valores, princípios, comuns a todos os seres em qualquer parte do planeta, não importa a herança cultural. O que prevalece é essa babel ideológica, fragmentada e difusa, onde cada um assenta o tijolo da sua própria crença para dar continuidade à construção do velho e surrado humanismo babilônico. Não há lugar para a verdade de Deus. O entendimento pessoal determina a forma de se ver o mundo e à luz disso segue o homem o seu próprio caminho. Esse é o quadro em que se insere a igreja na pós-modernidade. A situação se agrava porque ao peso da forte pressão social tais concepções se introduzem nos limites da fé e permitem que, em muitos casos, se perca a essência dos fundamentos para em seu lugar valorizar formas, priorizar superficialidades, tornar a mensagem apenas um instrumento motivacional, substituindo a pregação bíblica, transformar cultos em programas de entretenimento e abarcar toda sorte de liturgias, algumas esdrúxulas, sem qualquer preocupação com o conteúdo. Afinal, o que isso tem a ver com a disciplina na igreja atual? Tudo. A ânsia de tornar as igrejas atrativas e “amigáveis”, como defendem os líderes dessa corrente, leva à liberalização teológica. Além disso, abre caminho para concessões no campo do comportamento e flexibiliza o papel da disciplina sob o argumento de que ela afugenta as pessoas e faz com os membros de uma igreja com fundamentos ortodoxos procurem outras menos exigentes ou com “a porta larga”. Todavia, gostemos ou não, a disciplina é um pressuposto em qualquer área da vida, desde o atleta que se prepara para a maratona àquele que deseja viver a vida cristã segundo os padrões da Palavra de Deus (1 Co 9.24-27).
Este o sentido da advertência de Paulo a Timóteo: “Exercita-te a ti mesmo em piedade” (I Tm 4.7),
A palavra que Paulo usou para “exercita-te” (gr. “gytnnazo”) se refere ac treinamento feito pelos atletas no ginásio grego. O substantivo “gymnasia” (treinamento ou disciplina) presente no versículo 8 é a raiz da palavra “ginásio”.
Em outras palavras, sem a disciplina a caminhada está sujeita ao fracasso, e a travessia da linha de chegada impossível. O caráter preventivo da disciplina. Precisamos, antes de tudo, compreender o que significa disciplina. Uma de suas peculiaridades é o seu caráter preventivo. Isso tem a ver com ensino, instrução, prevenir contra o erro à luz das Escrituras, e não simplesmente com a imposição de um conjunto de regras que representam a tradição de homens, como advertiu o apostolo Paulo (Cl 2.20-23). Não que inexista o caráter normativo da disciplina, como veremos adiante. Mas o extremo do legalismo com sua carga de condicionamentos humanos e aparente piedade é apenas o reflexo do farisaísmo e da hipocrisia.
Assim, o ensino com fundamentação bíblica é primordial na era pós-moderna. Isso requer a ênfase permanente nos princípios como o correto padrão de aferição para o dia-a-dia da vida cristã. Não basta dizer: “Isto pode, aquilo não”; impõe-se trabalhar com a igreja o embasamento doutrinário preventivo, com o emprego da genuína exegese, que dê ao crente a capacidade de agir com segurança, sensatez, espiritualidade e compromisso com Cristo diante de cada situação de sua caminhada.
A disciplina preventiva precisa levar em consideração o fato de vivermos na chamada sociedade do conhecimento, onde o acesso às informações é algo extremamente aberto, acessível, oriundo de múltiplas fontes, mas que chega de forma aleatória, fragmentada, com a probabilidade de gerar muitas distorções na mente humana. Enquanto, nos tempos antigos, a palavra de alguém que tivesse conhecimento um pouco acima da média era lei até porque a grande maioria não dispunha da mesma autoridade intelectual para exercer o senso crítico, na sociedade pós-moderna é diferente.
As pessoas questionam, particularizam e querem respostas que não só as convençam, mas que sejam coerentes com a lógica da razão. Nos tempos idos, a autoridade era também respeitada. Hoje está sendo solapada em todas as esferas. O u seja, quem exerce cargo de liderança, sobretudo no meio eclesiástico, não pode se valer apenas da força de sua função para de maneira autoritária passar aos liderados o que precisa ensinar. Isso quer dizer que a disciplina preventiva na igreja da pós-modernidade implica em mostrar de forma consistente e dialogai que os princípios bíblicos não são extemporâneos, ultrapassados; antes, fazem pleno sentido na sociedade pós-moderna (Rm 12.3-8). E enfrentar os “por quês” com respostas bíblicas e bem expostas, com toda a clareza necessária; e evitar evasivas que confundem e tiram a credibilidade de quem exerce esse papel. Um ponto primacial é que os princípios bíblicos são fruto da revelação de Deus ao homem (2 Tm 3.10-17).
E questão fora de dúvida para os convertidos a Cristo.
Alguns, todavia, forçados pela sociedade secularizada, acabam limitando sua extensão à vida religiosa, como se não houvesse qualquer conexão entre eles e as demais áreas da existência humana.
Chegam a afirmar que “outras religiões” têm também as suas “verdades exclusivas” de modo que, por isso mesmo, não se pode permitir que interfiram na vida secular de cada um. Cria-se então uma dicotomia, um gueto, em que os princípios bíblicos aplicados através da disciplina preventiva ficam restritos a um compartimento o da fé enquanto os demais ficam excluídos de sua interferência. Basta ir à igreja pelo menos uma vez na semana para cumprir com a obrigação religiosa. O resto é por conta da pessoa e ponto final. Essa é uma das formas mais sutis de o Diabo desacreditar a fé e facilitar seu predomínio não só no mundo, mas também sobre as ações dos crentes. Os princípios bíblicos têm, de fato, origem na Revelação e exatamente por isso a sua fonte são ao mesmo tempo coerentes com toda a verdade que se manifesta no mundo cotidiano. A revelação de Deus não é absurda, e Ele não impõe nenhum absurdo ao ser humano.
As vezes, é preciso usar a estratégia empregada pelo apóstolo Paulo em Atenas, que, ao invés de partir da Revelação para a filosofia, fez o caminho inverso. Partiu da filosofia para a Revelação (At 17.15-34).
Em outras palavras, significa mostrar que as verdades inerentes ao dia-a-dia, seja na vida social, seja na vida científica, seja na vida comportamental, aquelas questões que a própria consciência admite como verdadeiras por ver coerência em suas formulações, tudo isso expressa por fim aquilo que os princípios da Revelação ensinam como a grande verdade de Deus. Assim pensavam os reformadores. Para eles, toda verdade, em qualquer campo do saber humano, precisava ser considerada como a verdade de Deus. Portanto, a igreja tem de dar primazia ao magistério cristão e usar as ferramentas adequadas para sempre aplicar a disciplina preventiva mediante a frequente e sistemática instrução bíblica.
O caráter normativo da disciplina. A disciplina tem também caráter normativo. Já vimos que a igreja é tanto uma instituição divina como humana. Mas ambas são indissociáveis. Em seu aspecto terreno, dispõe de personalidade jurídica e se obriga a explicitar em estatuto e regimento interno os seus princípios organizacionais. Em seu aspecto divino se submete à Bíblia Sagrada como seu estatuto maior, de onde derivam todas as normas aplicadas em sua peregrinação histórica, inclusive quanto à sua forma de organização. Assim, para usar a linguagem jurídica, existem as chamadas “cláusulas pétreas” da fé que constituem o caráter normativo da disciplina. São questões que tratam da inserção do novo crente na comunidade da fé, seus compromissos com a igreja e sua identificação com os princípios que agora norteiam a sua vida. São os imutáveis referenciais extraídos das Escrituras para que possa seguir em sua trajetória até alcançar o céu.
A Bíblia sempre será a fonte da disciplina normativa, sem qualquer adendo ou concessão aos que trazem para dentro das fronteiras eclesiásticas o conceito pós-moderno que despe o texto do seu significado intrínseco e alimenta a tese de que cada um tem o direito de livremente interpretá-lo e dar a ele o seu próprio significado. Ela será a base, o parâmetro, a verdade absoluta, com significado autônomo, para tudo quanto vier a ser decidido no âmbito da igreja (2 Pe 1.19-21).
Nunca é demais relembrar que estaremos incorrendo em erro se sobrecarregarmos os crentes com tradições humanas que mais expressam alguma herança cultural (ou mesmo religiosa) do que propriamente algum princípio bíblico. Não nos cabe tornar o caminho mais estreito do que já é.
É indispensável, por outro lado, explicitar em documento próprio as normas adotadas para que haja ciência quanto aos direitos, deveres e privilégios de quem se torna membro da igreja local por ser característica da era pós-moderna as pessoas não atentarem para princípio algum, mas praticarem o que “bem lhes parece aos próprios olhos”. A clareza da linguagem é de suma importância para que não pairem dúvidas e cada ponto reflita em verdade os princípios bíblicos, e não o desejo particular de alguém ou de um grupo. Alguns dirão: “A Bíblia por si só basta”. A premissa é correta, mas o Concilio de Jerusalém, lá atrás, nos primeiros anos de vida da igreja, à luz das Escrituras, expediu cartas às igrejas de então com as normas a serem observadas quanto aos problemas ali levantados e discutidos (At 15.1-32). Em outras palavras, não há nenhum erro ter a disciplina normativa explicitada em documento para que os crentes saibam como proceder. A classe de discipulado é o ambiente ideal para que a disciplina normativa seja passada em primeira mão aos que estão chegando à igreja local através da conversão.
É conveniente, inclusive, que seja o pastor o responsável por esse primeiro contato com os novos irmãos. Os crentes que se transferem de outras denominações deveriam também frequentar uma classe semelhante antes de serem recebidos. Isto se deve a várias razões:
1) Geralmente (toda regra tem exceção), são pessoas que portam algum tipo de insatisfação e estão à procura da igreja perfeita. Como não a encontram, vivem a síndrome do beija-flor. Não ficam em lugar algum.
2) Antes de se tornarem membros é justo e necessário que conheçam a sua nova casa espiritual, como funciona, a liturgia, as normas, o tipo de serviço que ali se presta ao Senhor, para que então se definam, se ajustem ao novo ambiente e estejam conscientes de sua nova responsabilidade. O documento a que aludimos há pouco é também conhecido como Declaração de Propósitos e já é empregado em algumas igrejas. Não só o crente que se submete ao batismo em águas, mas o que se transfere de outra denominação, ou mesmo de outra igreja da mesma fé e ordem, após concordar com os seus termos, é convidado a assiná-lo em solenidade especial, juntamente com o pastor, para só então ser aceito como membro. Qual a importância desse compromisso? E que a igreja, conforme o Código Civil, desfruta da liberdade de estabelecer a sua própria estrutura de funcionamento, não cabendo nenhuma interferência do estado em suas decisões. Ela é soberana em questões de fé. Mas na era pós-moderna o que mais as pessoas querem é lutar por direitos, sem demonstrar a mínima preocupação com deveres. A Declaração de Propósitos, que inclui também o Estatuto e o Regimento Interno, protege a igreja contra aqueles que, movidos pelo espírito de Jezabel, tornam-se rebeldes e são até capazes de levar a igreja às barras dos tribunais contra alguma decisão com a qual não concordam. Pelo seu conteúdo, a Declaração de Propósitos se configura como um pacto em que as partes estão de acordo com as normas contidas, sendo, portanto, uma peça de defesa em casos extremos. O caráter corretivo da disciplina. A disciplina tem, finalmente, caráter corretivo. Ela visa corrigir rumos, trazer de volta ao devido lugar, fazer com que a verdade prevaleça, acertar o que está errado. Mas os tempos de hoje não favorecem a postura autoritária muito comum em épocas não tão distantes. Já não é mais possível chegar e dizer: “o que eu determino está determinado. Ninguém tem o direito de reclamar ou questionar”.
É bom lembrar que, além de ser errada, do ponto de vista bíblico, o povo geralmente já não aceita essa forma de liderança. Então qual o caminho para aplicar a disciplina corretiva? Ele se constitui de três simples passos: mostrar onde está o erro, explicar porque está errado e ensinar como fazer para corrigir o erro. O problema não pode ser tratado como se o líder estivesse impondo a sua vontade pessoal, o que ele quer, mas aplicando os princípios bíblicos, que, como já foi dito, são coerentes com o dia-a-dia das pessoas. É a partir daí que elas poderão avaliar o seu modo de vida no sentido mais amplo para ver o que precisa ser corrigido ou aperfeiçoado. Só assim terão condições de aplicá-los a cada situação da vida e não só àquelas que são consideradas “pecados”.
Vale também ressaltar que a disciplina corretiva não tem o caráter de lançar fora, mas sempre restaurar, trazer de volta ao aprisco. Mesmo quando há necessidade de se tomar alguma medida disciplinar restritiva, como a suspensão de determinadas atividades ou mesmo o desligamento, o objetivo será sempre restaurar, e não lançar no abismo, como no episódio relatado por Paulo em ambas as cartas aos coríntios (I Co 5.1-5; 2 Co 2.1-8). Por fim, duas metáforas empregadas no Salmo 23 permanecem plenas de significado para a disciplina na igreja da pós-modernidade: a vara e o cajado. Com a primeira o pastor ensina, expõe a Palavra com integridade, prepara e aperfeiçoa. Mostra o que Deus quer para o seu rebanho. Com a segunda, puxa a ovelha que está à beira do abismo e a coloca de volta na trilha que leva aos pastos verdejantes e às águas tranquilas. Uma igreja bem disciplinada entregar-se-á com alegria e dedicação à sua tarefa e terá, como veremos a seguir, um forte comprometimento com a missiologia urbana.
IV. A Igreja e a missiologia urbana
Outro aspecto importante da vida eclesiástica tem a ver com o processo de urbanização do mundo, uma realidade desafiadora que exige pronta e contínua resposta da igreja como agente do Reino de Deus na Terra.
O fluxo migratório constante dos países pobres para os países mais desenvolvidos e do interior para os grandes centros, em busca de melhores oportunidades, aliado a outros fatores da vida pós-moderna, indica com segurança que nos próximos anos a maior parte da população do planeta estará vivendo nas grandes cidades, transformadas em metrópoles e megalópoles.
A estratégia urbana de Paulo. Para se conhecer como a igreja pode desempenhar bem o seu papel como comunidade terapêutica na urbe pós-moderna, nada melhor do que descobrir a metodologia empregada pelo apóstolo Paulo em suas viagens missionárias.
A primeira observação é que ele procurava instalar-se nos grandes centros, onde a mensagem seria mais bem repercutida para então irradiar-se pelas regiões adjacentes (At 13.4-6,13,14). Obediente ao plano divino de universalizar o evangelho mediante a transição da igreja para o mundo gentílico, o apóstolo usou a mesma estratégia quando transpôs os limites da Ásia e alcançou as fronteiras europeias através da Macedônia, atual norte da Grécia (At 16.11,12). Filipos foi a primeira cidade aonde chegou e na qual permaneceu por alguns dias. Dali, partiu imediatamente para Tessalônica, a capital da província (At 17.1), para depois, passando por Beréia, alcançar Atenas (At 17.15), centro dos grandes conhecimentos filosóficos, de onde seguiu até Corinto, capital da Acaia, atual sul da Grécia. Em todos estes casos, os grandes centros, como Tessalônica, Acaia e Corinto, foram os locais estratégicos onde o evangelho começou a ser anunciado. O apóstolo Paulo sabia utilizar-se, também, de estratégias adequadas para cada realidade.
O seu próprio perfil é o testemunho de que Deus escolhera a pessoa certa para aquelas circunstâncias. Nascido em Tarso, uma das principais cidades do império romano, pertencia a uma família judaica e cresceu sob a influência da cultura helênica, o que lhe dava mobilidade para transitar livremente entre as fronteiras da época. Em Filipos, sua primeira iniciativa foi buscar um lugar para a oração, fora da cidade, onde pôde falar às mulheres ali reunidas (At 16.13,14), entre as quais Lídia, empresária bem-sucedida no ramo de púrpura.
Não foi por acaso que as primeiras pessoas a ouvirem o evangelho na Europa tenham sido as mulheres. Elas são, por natureza, mais sensíveis e sempre mais dispostas a lutar pelas causas que assumem. Sem dúvida, tiveram papel fundamental na divulgação do Evangelho. Em Atenas, famosa pelos grandes embates filosóficos, as artes e os deuses da mitologia grega, Paulo utilizou como ponto de contato a sua religiosidade para apresentar aos atenienses a mensagem sobre o Deus desconhecido, com resultados imediatos (At 17.15-34). Em cada realidade da vida urbana, uma estratégia específica. Por conseguinte, o apóstolo estava consciente da batalha no plano espiritual em relação às cidades. Sua carta aos efésios é prova disso (Ef 6.10-20). Nessa cidade, localizada hoje na Turquia, prestava-se culto a Diana, uma das deusas do panteão romano. Em Filipos, a artimanha de Satanás foi tentar envolver Paulo com elogios ardilosos para manter a credibilidade demoníaca intacta entre os filipenses. A ser desmascarado, era preferível a Satanás elogiar, dizendo a verdade a contragosto, e assim continuar desfrutando da simpatia do povo. Mas o apóstolo já estava preparado, pois antes de qualquer outra coisa, em solo europeu, fez uso da arma da oração para enfrentar o confronto no nível espiritual (At 16.13,16-18). O desafio moderno da urbanização. A crescente urbanização do mundo, com o inchamento das grandes cidades, metrópoles e megalópoles, como é o caso do Rio de Janeiro, São Paulo, Cidade do México, Tóquio e outras do mesmo porte, geram desafios que devem ser encarados com tenacidade. O primeiro é a diversificação cultural.
Assim como Paulo era de origem judaica, nasceu em Tarso e sofreu a influência helênica, esta era também a característica cultural do império romano. O latim era o idioma oficial, mas o grego predominava em suas fronteiras entre povos de raízes culturais bem distintas. De igual modo, os centros urbanos, hoje, não são culturalmente homogêneos. Há uma diversidade enorme de “tribos”, termo preferido pela juventude pós-moderna, culturas e tradições. Outro desafio é a falta de oportunidades sociais, pois a grande maioria não consegue sequer chegar à base da pirâmide social e acaba vivendo à margem do processo, nos subempregos, entregue às drogas, à mendicância, à prostituição, ao banditismo e a toda sorte de violência. Por isso, o alto índice de favelização, principalmente no Brasil.
O materialismo é, também, uma característica da urbe. Se, de um lado, a luta pela sobrevivência leva os mais pobres a pensar apenas no que comer, isto é, sem qualquer tempo para assuntos espirituais, por outro, os endinheirados agem como o rico da parábola: os bens materiais lhes bastam (Lc 12.16-21). Há, também, o desafio das novas tendências sociais, que alteram valores sagrados para a saúde moral da sociedade. Com a proliferação do divórcio, o conceito de família, hoje, na sociedade distanciada de Deus, não é o mesmo da Bíblia. Isto sem falar na incidência de outras circunstâncias como a secularização, a defesa do aborto, o homossexualismo, o relacionamento sexual livre entre os jovens, sem o compromisso do matrimônio, e outras situações que tornam os defensores dos padrões bíblicos aparentemente antiquados e ultrapassados. O avanço das seitas, por outro lado, se constitui na outra face do desafio da vida urbana. Elas apareceram na época de Paulo (2 Tm 2.14-19; 3.6-9) e nos anos subsequentes do Cristianismo, mas em nenhum outro tempo da história tiveram expansão considerável como nos dias atuais. Por último, entre outros desafios, está o da solidão cósmica. Apesar da multidão que o cerca, e da imensa selva de pedra na qual vive, o massacre constante dos turbilhões de problemas da grande cidade torna o indivíduo extremamente só, deprimido e perdido no cosmos.
As estratégias da igreja para o mundo urbano. O quadro há pouco pintado retrata a vida urbana em cores pálidas. Ele é mais forte. Mas a igreja consciente de suas responsabilidades e capacitada pelo poder do Espírito Santo há de estar pronta para ser obediente à visão de Deus e transpor todas as barreiras para ser relevante com a mensagem do Evangelho. Assim como Paulo foi obediente ao chamado divino (At 16.9,10; 26.19,20), a igreja igualmente não pode fugir da realidade das grandes cidades, metrópoles e megalópoles, pois aí estará praticamente a maior parte da população mundial nos próximos anos. Por outro lado, somente a igreja que dispor de visão multiministerial, assim como a sabedoria de Deus é multiforme, terá condições de estar presente em todas as circunstâncias que demandam sua ação na vida urbana. Em sã consciência, as reuniões tradicionais da semana, com seu inestimável valor, não são suficientes para confrontar a vida paradoxalmente opulenta e ao mesmo tempo degradante da urbanização. Visão multiministerial significa diversidade de ministérios atuantes na igreja local para alcançar todos os segmentos sociais. Das crianças aos mais idosos, todos precisam estar mobilizados em todas as frentes menores carentes, drogados, prostitutas, terceira idade, empresários, profissionais liberais a fim de que se cumpra através da igreja o ministério da reconciliação (2 Co 5.18). Cabe à igreja, portanto, entender que o fato há pouco descritos, são reflexos de ações demoníacas sobre as cidades, que se intensificarão cada vez mais à medida que se aproxima a volta de Cristo. Assim como Paulo buscou um lugar para a oração antes de enfrentar a batalha, a igreja só terá êxito em sua missiologia urbana repreendendo os espíritos que atuam no mundo invisível para então conquistar as cidades para Cristo. Esta é, também, uma igreja preparada para o desafio das missões transculturais.
V. A Igreja e as missões transculturais
É comum estudar-se o Apocalipse sob a perspectiva dos juízos que serão executados sobre o mundo no final dos tempos. N o entanto, ele é também o testemunho de que o plano de Deus através dos séculos, que incluiu o projeto chamado Igreja, terá seu cumprimento final mediante a proclamação do evangelho por ela até os confins da Terra. Missões transculturais, portanto, não é uma teoria, mas um sério compromisso bíblico do povo de Deus com a sua obra. Não há como pensar a existência da igreja sem que a missão da evangelização mundial esteja agregada, pois aqui está a razão para que ela tenha sido projetada na mente de Deus e tornada realidade entre os homens.
A visão que revela a universalização do evangelho.
A ordenança bíblica da proclamação do Evangelho em todo o mundo (Mt 28.19,20; Mc 16.15) sinaliza o seu caráter universal, ou seja, o direito que todos os povos têm de ouvi-lo de forma clara e consciente para crerem no Senhor Jesus Cristo, arrepender-se de seus pecados e ter a certeza da vida eterna. Essa universalidade se fundamenta na morte do Cordeiro (Jo 1.29; Is 53.7), o qual, na visão do Apocalipse, é o único considerado digno e, portanto, perfeitamente legitimado para desatar os selos do livro e executar os juízos sobre a Terra. Por que tem ele autoridade para fazê-lo? Por causa da justiça de Deus revelada em sua morte para redimir o pecador, antes de julgá-lo. A cena vista por João fecha as cortinas da graça salvadora da época presente e dá início aos flagelos que, através da abertura dos sete selos, serão lançados sobre a humanidade que rejeitou a Cristo. No entanto, este é o cerne da verdade: em toda a história bíblica os juízos de Deus jamais são executados sem que haja oportunidade de arrependimento (Jn 3.10). Assim sendo, não é justo que, pela negligência das igrejas, os povos não ouçam a voz de Deus e sejam apanhados pelo seu juízo. O Cordeiro cumpriu a sua parte e venceu (Ap 5.5). Por isso pode assentar-se como juiz no trono do Universo. Outro detalhe da visão do Apocalipse é a onipresença do Cordeiro, representada pelas “sete pontas e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus enviados a toda a terra”. Sete, na numerologia Bíblia, é símbolo de plenitude e, nesse caso, denota a ideia de que os olhos do Senhor estão por toda a parte, acompanhando passo a passo a ação da igreja na proclamação da mensagem do Reino de Deus.
Ê importante frisar que o Cordeiro, em sua onipresença, não compartimenta o mundo em áreas específicas ou privilegiadas. Em "toda a terra” ele supervisiona e cria as condições necessárias para que a redenção seja proclamada, como fez Deus com o profeta Jonas ( I.I -I 7 ; 2 .I-I0 ; 3.1-3). O Evangelho terá de ser pregado em todo o mundo para que se cumpra a justiça de Deus. Se o Evangelho é universal, a morte do Cordeiro teve, também, o mesmo caráter (Ap 5.9; 2 Co 5.15). Não há exclusividade neste ato de entrega voluntária e substituta em favor do homem. Não importa onde e como vivam, se nas florestas da Amazônia ou nas montanhas do Himalaia, todos são alvos da graça imerecida de Deus e precisam urgentemente conhecê-la. A visão do papel transcultural da igreja. E aí que entra o papel transcultural da igreja. Segundo Atos 1.8, sua visão não pode circunscrever-se à comunidade local, mas deve ampliar-se até as últimas fronteiras do planeta. O texto transmite a ideia de simultaneidade. Enquanto a igreja evangeliza a cidade, seus olhos pousam mais além e veem terras mais distantes que estão brancas para a ceifa (Jo 4.35). Vemos o mesmo conceito de modo cristalino na visão de João. Ali a expressão “de toda tribo, e língua, e raça e nação” (Ap 5.9) implica na proclamação simultânea do Evangelho até os confins da terra. A linguagem enfática determina que ninguém poderá ficar de fora. Todos os povos deverão ser alcançados. Assim o Cuia Prático de Missões define Missões Transculturais: O prefixo “trans” vem do latim e significa “movimento para além de”, “através de". Portanto, em linhas gerais, missões transculturais é transpor uma cultura para levar a mensagem do Evangelho. Esta mensagem não pode se restringir a uma só cultura, mas tem alcance abrangente, em todos os quadrantes da terra, onde quer que haja uma etnia que ainda não a tenha ouvido.
E interessante que o número quatro aparece de forma implícita. N a Bíblia, ele é símbolo de totalidade. Isto implica em afirmar, com absoluta segurança, que a doutrina de missões é bíblica, mesmo que este termo não apareça nas Escrituras. Assim como a Trindade não é mencionada no texto sagrado de forma explícita, o cristão bíblico não duvida de que ela se constitui numa verdade doutrinária. A mensagem salvífica, portanto, tem como alvo o mundo em sua globalidade. Para tornar ainda mais séria a responsabilidade, o termo “nação”, que aparece em Apocalipse 5.9 e também em Mateus 28.19, vem do grego ethnos, cujo sentido é diferente da ideia geopolítica de países como são atualmente constituídos. Aqui significa povos na sua essência étnica, envolvendo cultura, dialeto, tradições, modus vivendi, visão de mundo e outras particularidades. Sob esse ponto de vista, há pelos menos doze mil povos espalhados no mundo, e todos, sem exceção, estão incluídos no plano da redenção. Não basta olhar os países, que somam hoje aproximadamente 240, mas cada “tribo, e língua, e raça, e nação”. Esta é a forma pela qual Deus vê o mundo.
A visão de Isaías sobre a missão messiânica e, por conseguinte, da igreja é clara: “... também te dei para luz dos gentios, para seres a minha salvação até a extremidade da terra” (Is 49.6; At 13.47). A transculturação, neste caso, significa encontrar em cada cultura os instrumentos adequados para proclamar de forma clara, aceitável e consciente a mensagem do evangelho. H á na Bíblia elementos da cultura judaica que não foram transplantados para o Cristianismo. O preparo do missionário, de igual modo, implica em ele saber que não lhe cabe transplantar no país onde exercerá o seu ministério elementos da cultura de seu país de origem que só ali fazem sentido.
Sabemos que os princípios da Palavra de Deus são absolutos, inalteráveis e universais, assim como os elementos químicos da água.
No entanto, pode-se servi-la em copos diferentes.
Para exemplificar, cabe aqui a clássica expressão do famoso evangelista hindu Sadu Sudar Sing: “A água da vida deve ser servida ao povo hindu em copo hindu”. Isto é transculturação. E saber discernir em cada cultura aquilo que é bíblico, antibíblico e extrabíblico.
A visão que revela o cumprimento da missão da igreja sobre a Terra. A visão do Apocalipse implica em afirmar a dupla grandeza da missão da igreja.
Os anjos gostariam de ter assumido esta tarefa, mas coube ao povo de Deus a singular oportunidade de abrir as portas da salvação para os perdidos da Terra. Nenhuma instituição desfruta deste privilégio. Só a igreja (I Pe 1.10-12). 2) Trata-se de tarefa gigantesca alcançar cada “tribo, e língua, e povo, e nação” em seu próprio meio cultural antes que Jesus venha. Para executá-la só há uma forma: mobilização total e prioridade absoluta. Nenhuma atividade, por mais importante que seja, poderá subtrair tempo e recursos dedicados à evangelização mundial. Agir deste modo é subtrair, também, as bênçãos de Deus sobre a igreja. Ou se quer, de fato, ouvir o clamor do mundo, ou então a igreja estará como os contemporâneos de Ninrode: construindo torres para ajuntar-se e alegrar-se à sua volta, esquecendo-se das almas que perecem nas últimas fronteiras do mundo (Gn I I . 1-6). Dizer que faltam recursos é uma aleivosia. Por outro lado, a tecnologia, hoje, põe o mundo dentro de casa. Assim sendo, resta apenas agir... e rápido. Todavia, a visão de João traz uma boa notícia: A igreja não falhará. Ela cumprirá a sua missão, custe o que custar, nem que seja preciso vir o vento forte da perseguição para espalhar os seus membros pelo mundo. Impulsionada pelo poder do Espírito Santo, a igreja começa a mover-se em todas as direções para que o mundo todo saiba que Jesus Cristo é o Senhor que se revela agora como Salvador, mas um dia Ele assentar-se-á no trono do Universo para julgar os vivos e os mortos. Se não for assim, a visão de João terá sido uma fraude. Mas ela é a eterna e infalível Palavra de Deus. Portanto, naquele dia, diante do Cordeiro, a Igreja será formada por pessoas fiéis compradas pelo seu sangue de “toda tribo, e língua, e povo, e nação”, que se tornarão reis e sacerdotes para Deus “e reinarão sobre a terra”. O crescimento universal da igreja, no entanto, gera tensões decorrentes de seu lado humano. Uma delas, como veremos no próximo ponto, é o crescente denominacionalismo.
VI. A Igreja e o denominacionalismo
Esta é a questão que se impõe: Qual o verdadeiro lugar das denominações no processo histórico da igreja? Como compreender o seu papel à luz das Escrituras?
Mais do que em qualquer outra época, é necessário desenvolver uma visão clara a respeito, tendo em vista duas razões, entre outras:
1) O surgimento continuado e crescente de novos ramos denominacionais.
2) A necessidade de os crentes, principalmente os novos na fé, saberem como comportar-se nesse contexto nem sempre preciso de tantas ramificações evangélicas. Todavia, reconhecer o caráter secundário das denominações é fator determinante para que não se enfraqueça, jamais, a doutrina bíblica da Igreja como corpo de Cristo. A doutrina da igreja no Novo Testamento. Em que pese a quantidade de denominações existentes, o Novo Testamento não se manifesta em momento algum a esse respeito. O seu ensino acerca da estrutura da igreja encerra basicamente duas verdades.
1) Aponta para o seu caráter universal (At 20.28; Ef 2.21,22; Hb 12.23). È o povo de Deus espalhado pelo mundo, que professa a fé em Cristo, proclama as boas novas aos perdidos da Terra e cultiva no seu viver diário a comunhão em seu duplo aspecto: vertical (com Deus) e horizontal (uns com os outros). As expressões paulinas em Efésios 4.4-6 “há um só corpo”, “um só Espírito”, “uma só esperança”, “um só Senhor”, “uma só fé”, “um só batismo” e “um só Deus” transmitem essa ideia, deixando explícito que a Igreja de Cristo está acima das estruturas humanas. Ainda que estas sejam, em certo sentido, necessárias para a sua instrumentalização na face da Terra, a Igreja se constitui de um único Corpo formado por aqueles que foram comprados pelo sangue de Cristo e vivenciam a vida cristã na “unidade do Espírito pelo vínculo da paz”.
2) O ensino do Novo Testamento revela o caráter local da igreja, pois é dessa forma, na comunidade, que ela expressa a sua dimensão de vida e exerce as suas responsabilidades como agente do Reino de Deus no mundo (Mt 18.17; At 15.4; 16.5). Mesmo nos casos em que o Novo Testamento reporta-se à igreja em sua expressão local, não determina nenhuma nomenclatura específica que possa ser tomada em seu sentido original como a forma pela qual devesse ser denominada.
Ao se referir à igreja local, o livro de Atos, padrão da igreja do Novo Testamento, usa em quase todas as referências o designativo “igreja” para identificá-la, sem nada acrescentar (At 9.31; I I .22; 12.1; 12.5). Razões para a existência das denominações. Mas, se não há, na Bíblia, nenhuma menção clara e específica que determine para a igreja outro designativo além deste, mesmo para a sua expressão local, por que a existência de tantas denominações, com estruturas autônomas, nomes variados e às vezes tão díspares? E tão ampla a diversidade que existe de tudo um pouco nesse universo, até igrejas que estimulam supostos contatos com espíritos de pessoas falecidas, o culto aos anjos e outras aberrações, isso para não falar dos desvios mais conhecidos.
A pergunta em apreço é feita com frequência, principalmente pelos não crentes, quando estão sendo evangelizados. E precisa de resposta.
1) A primeira razão para a existência de tantas denominações é de fundo histórico. A medida que a igreja, em sua trajetória institucional, começou a se desviar gradualmente dos postulados da doutrina apostólica, começaram a surgir indivíduos e movimentos em seu meio, pregando o retorno ao modelo primitivo, inconformados com a perda crescente da simplicidade da fé. Esses movimentos passaram a receber denominações próprias identificadas com as ideias defendidas por seus líderes. O grande divisor de águas foi a Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero, numa época de obscurantismo, em que a igreja histórica descera aos níveis mais baixos de relaxamento moral e espiritual, depois de incorporar, ao longo dos séculos, diversas práticas pagãs em sua liturgia. Lutero resgatou a doutrina bíblica da justificação pela fé e estabeleceu o seguinte princípio, que se tornou lema dos evangélicos ao redor do mundo: “Só a graça; só a fé; somente as Escrituras”. A Reforma Protestante, portanto, deu origem às chamadas denominações históricas, em cujo meio floresceu o movimento pentecostal, nos primeiros anos do século XX, sabendo-se que houve através dos tempos manifestações pentecostais em diversas fases da História da Igreja.
2) Outra razão que explica a existência de tantas denominações é de natureza doutrinária. De um lado está a ênfase unilateral, extremada ou isolada de determinadas doutrinas bíblicas, enquanto outras são relegadas a segundo plano. De outro, a negligência que despreza certos ensinos bíblicos, como a contemporaneidade dos dons espirituais, e não permite que a congregação seja por eles abençoada. Junte-se a isso a falta de amor e de espiritualidade, e está aberta a porta para o surgimento de uma nova denominação. Sem nos esquecermos de que as heresias são um fator muito forte de fragmentação. Nesses casos, não há nenhuma dúvida: “Destes afasta-te”.
3) Há que se considerar também as razões de ordem administrativa. Aqui entram a forma de governo, a estrutura organizacional e a necessidade de se normatizar legalmente a vida da igreja local perante a legislação do país. Como nem sempre as ideias convergem, as igrejas que estão sob a mesma bandeira e buscam viver o mesmo modelo administrativo se organizam com um nome peculiar para que assim sejam identificadas diante da sociedade.
No Brasil, apenas como exemplo, a Assembleia de Deus iniciou-se em 1911 como Missão da Fé Apostólica. Só a partir de 1918 adotou o nome atual. Não se deve esquecer, ainda, de que em muitos casos as razões estão no egocentrismo. De um lado, está a vaidade pessoal, a busca da liderança como um fim, a falta de humildade para submeter-se à liderança daqueles que foram legitimamente constituídos por Deus.
De outro, a insegurança de muitos daqueles que já lideram a igreja, o apego ao pastorado, mesmo que o seu tempo tenha terminado, levando-os a não abrir espaço para o surgimento de novas lideranças. Se não há disposição para ouvir a voz do Espírito, como fez a igreja primitiva reunida em concilio na cidade de Jerusalém (At 15), as dissidências surgem e acabam gerando novos grupos denominacionais.
2) Por último, o denominacionalismo pode ser compreendido como parte da vontade permissiva de Deus.
A diversidade de igrejas, que têm como fundamento a doutrina apostólica, torna o homem indesculpável, ao usar como justificativa para não aceitar a fé a possibilidade de não ter encontrado um lugar onde possa sentir-se bem. N o atual universo em que há não só diferentes modelos administrativos, mas também formas distintas de liturgias, sem prejuízo dos fundamentos da fé, essa desculpa jamais terá sentido. Como lidar com a existência das denominações. A diversidade das denominações está aí, e todos têm de lidar com ela. N o entanto, alguns pontos precisam ser levados em consideração:
1) Buscar a unidade fraterna e o aperfeiçoamento espiritual dos santos é dever de todos. Para tanto, os ministérios foram dados à Igreja, e não a uma igreja ou denominação (Ef 4.11-13).
2) A unidade é orgânica, espiritualmente falando, mas não precisa ser necessariamente organizacional, humanamente falando. Em outras palavras, podemos ter denominações administrativamente autônomas, e que sejam fraternas, relacionando-se sob a bandeira do mesmo Espírito.
3) Não se pode, em nome da unidade, abrir mão dos princípios absolutos e inegociáveis da Palavra de Deus. Se os fundamentos são outros, não há também comunhão (I Co 3 .1 1; Gl 1.8).
Aqui vale o pensamento de Agostinho: “Nas coisas essenciais, unidade; nas não essenciais, diversidade; e em todas as coisas, amor”. E necessário, ainda, que se busque um relacionamento de respeito mútuo. Usar termos jocosos ridicularizando irmãos que pertençam a outras denominações não é próprio de alguém nascido de novo. Assim como não nos agrada sermos desconsiderados, eles pensam da mesma forma. Chamá-los de “primos”, mesmo que por brincadeira, em nada ajuda a construir pontes de comunhão. Afinal, o Céu é para todos os que confessarem o nome de Jesus Cristo e que dEle são aqui na Terra. Outra boa maneira de mostrar ao mundo a unidade da igreja na diversidade denominacional, sem abrir mão da identidade, é participar de projetos comuns ao povo de Deus, desde que a centralidade esteja na Pessoa de Cristo, e não na periferia do marketing vazio de shows que não glorificam a Deus. Dia da Bíblia, celebrações históricas como a comemoração da Reforma Protestante, Dia de Pentecostes e eventos em que o objetivo seja a evangelização se constituem em excelentes estratégias para essa demonstração de fé. Só assim, respeitando-se as diferenças que não mutilem o alicerce, e realçando os pontos que fundamentem a fé, poder-se-á cumprir, na igreja, a oração de Jesus: “... que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21). Aqui somos introduzidos a outro tema desafiante relacionado à condição humana da igreja: o trabalho feminino.
VII. A Igreja e o trabalho feminino
Não obstante os avanços, esse tema ainda gera polêmica em determinadas áreas do movimento evangélico, provavelmente em virtude de alguns preconceitos contra o trabalho feminino na igreja. É compreensível, mas não aceitável que os condicionamentos culturais da sociedade tenham favorecido posturas discriminatórias contra a participação da mulher nas atividades eclesiásticas. Desde a primeira hora da igreja, entretanto, mesmo durante o ministério terreno de Cristo, as mulheres estiveram presentes com a sua relevante contribuição para a vida comunitária do povo de Deus. O resgate da mulher no cristianismo.
Na verdade, uma das grandes conquistas do cristianismo foi resgatar a posição da mulher e elevá-la à sua verdadeira condição diante de Deus. Vê-se tal propósito, por exemplo, na própria linhagem de Cristo (Mt 1.3,5,6,16).
Mateus em sua genealogia refere-se aos ancestrais somente pelo lado paterno, mas dá destaque a cinco mulheres Tamar, Raabe, Rute, Bate-Seba e Maria, das quais apenas sobre Rute e Maria não pesava nenhum deslize moral. Tamar prevaricou com o sogro (Gn 38.12-30), Raabe vivia como prostituta em Jericó (Js 2.1; Hb 11.31) e Bate-Seba cedeu aos galanteios de Davi (2 Sm I I . 1-4).
Esses registros encerram algumas razões:
1) Deus não oculta as transgressões dos personagens bíblicos. Ê tão claro esse propósito que Mateus substitui o nome de Bate-Seba pela seguinte declaração: “a que foi mulher de Urias”. Deus assim o fez porque isso serve de advertência para os crentes atuais quanto à sua falibilidade e consequente dependência da graça divina.
2) Fica subentendido, no texto sagrado, que elas se arrependeram de suas falhas morais e mudaram de atitude porque creram na obra redentora futura de Cristo, que alcançou os fiéis do Antigo Testamento (Hb 11.1,2,32-40).
3) O aparecimento de seus nomes na genealogia de Cristo, como exceção à regra, em nada diminui o Salvador; antes, exalta a sua encarnação como nosso compassivo e gracioso Redentor e dignifica a mulher como parte da linhagem que suscitou o Redentor da decaída raça humana. Esse enfoque enaltecedor do papel da mulher é visto, também, no ministério de Jesus. Além dos doze discípulos, aparecem diversas mulheres que o seguem por onde quer que Ele passe (Lc 8.1-3). Algumas são citadas até pelo nome Maria Madalena, Joana e Suzana como pessoas que não só acompanham, mas contribuem com seus bens para a manutenção do seu ministério. No episódio da ressurreição de Cristo, por sua vez, para confrontar o fato de o pecado ter entrado no mundo pela primeira mulher, Deus permite que duas seguidoras de Cristo Maria Madalena e a outra Maria sejam as primeiras a vê-lo ressuscitado e tenham o privilégio de dar a alvissareira notícia em primeira mão aos discípulos (Mt 28.1-10). Por que elas primeiro, e não eles? Para deixar nítida a sua destacada posição no cristianismo incipiente. Aposição da mulher na Igreja Primitiva. Com a ascensão de Cristo, inicia-se o processo de inauguração da Igreja, que culminou no dia de Pentecostes, e mais uma vez as mulheres são participantes desde a primeira hora, incluindo-se no grupo a mãe de Jesus (At I.I4). Subentende-se que elas viram a ascensão do Senhor, participaram da assembleia que escolheu o sucessor de Judas e estavam presentes no dia em que o Espírito desceu sobre a igreja.
Se foi assim desde o princípio, por que negar-lhes, hoje, a oportunidade de serem usadas pelo Senhor no papel que lhes couber dentro do Reino de Deus e segundo a vontade soberana dEle? Não se trata, aqui, de substituir o homem em sua função dentro da estrutura social, familiar e religiosa, e sim permitir que a mulher preste a sua efetiva contribuição, como indivíduo, na obra de Deus. As mulheres se destacam, também, na igreja primitiva, pelo seu envolvimento no serviço de assistência social. A primeira a ser mencionada é Dorcas (At 9.36-42), que, movida pelo amor a Deus, empregou sua vida a servir ao próximo, na cidade de Jope, com atos de caridade. E tanto que a sua morte trouxe grande tristeza, a ponto de Pedro ser chamado para orar em favor de sua ressurreição.
Um fato chama atenção na sua história: ela é também chamada de discípula (At 9.36).
A segunda mulher aparece na Epístola aos Romanos. Trata-se de Febe, da igreja em Cencréia, porto oriental de Corinto, da qual distava cerca de treze quilômetros. Ela é recomendada por Paulo para que seja recebida com a mesma hospitalidade com a qual honrava os servos de Deus (Rm 16.1,2).
N o grego, o termo empregado para servir é díakonon, que está em sua forma masculina e sem artigo definido; isso indica a possibilidade de ela ter exercido um trabalho compatível ao dos diáconos. Em Romanos 16, quando Paulo menciona uma série de outras mulheres cooperadoras do seu ministério apostólico, inicialmente aparece o casal Priscila e Àquila, em cuja casa também se reunia uma igreja (vv.3.5). Segundo alguns eruditos, o fato de a esposa ter sido citada primeiro não é mera regra protocolar, pois a literatura de então não admitia esse tipo de gesto. E tanto que na hora de saudar outros casais o apóstolo o faz na ordem marido e mulher.
Mencionam-se, ainda, de forma específica, Maria, Trifena, Trifosa, Pérside, a mãe de Rufo, Júlia, a irmã de Nereu e, por fim, Olimpas. O que as cooperadoras de Paulo faziam o texto não esclarece, mas é um detalhe de menor importância. O que conta é o reconhecimento pelo trabalho que elas faziam. A importância do trabalho feminino na igreja. A Bíblia respalda o trabalho feminino na igreja. Se as referências há pouco, não bastassem, Paulo reivindica o direito, em I Coríntios 9.5, de ter a companhia de mulheres santas em seu ministério apostólico. E, em Filipenses 4.2,3, está implícito que duas de suas cooperadoras, Evódia e Síntique, precisavam ajustar a sua sintonia no seu relacionamento interpessoal. Os que apelam para I Coríntios 14.34 “as mulheres estejam caladas nas igrejas” fazem uma exegese errada e isolada do texto, que contraria a atitude do apóstolo em reconhecer a dedicação feminina, bem como conflita com o que ele mesmo havia dito, na própria carta em apreço, afirmando que elas podem orar e profetizar (1 1.5).
O versículo citado deve ser interpretado à luz do seguinte, o 35; ou seja, “a proibição das mulheres interromperem o culto com perguntas que podiam ser feitas em casa”. Além das razões bíblicas já apresentadas, há outras que reforçam a tese em favor do trabalho feminino na igreja. I) Foge à lógica pensar que um segmento tão grande, maior do que o dos homens, não tenha nenhuma contribuição a prestar na obra de Deus.
2) As mulheres têm maior sensibilidade para atuar em áreas nas quais o sexo masculino pouco produz.
3) Nem sempre os homens se mostram dispostos a agir. Nessas horas, elas se revelam mais corajosas e se constituem em fonte de estímulo na igreja.
4) Elas são membros do Corpo de Cristo e desfrutam dos mesmos deveres e privilégios de todos os demais membros.
5) Sem nenhum subterfúgio, quando os homens não querem mesmo fazer, são elas a quem Deus usará para levar adiante o seu propósito.
Quando o regime comunista se instalou na China, muitos missionários e pastores foram torturados e mortos. Por muito tempo pensou-se no mundo ocidental que a igreja chinesa, em razão disso, teria fracassado.
Todavia, descobriu-se mais tarde que ela estava mais forte do que nunca. O motivo residia em suas esposas que não se acovardaram, mas deram continuidade ao trabalho de seus maridos. Conduziram a igreja chinesa em vitória pelos caminhos subterrâneos. O cristianismo resgatou a mulher e a elevou à sua verdadeira condição diante de Deus.
Na igreja primitiva, elas ocuparam o seu espaço como cooperadoras e tiveram o seu trabalho reconhecido. Cabe à igreja de hoje compreender que a dedicação feminina na obra do Senhor não é menos importante do que o trabalho empreendido pelos homens. Ambos têm o seu espaço no Corpo, segundo a vontade soberana de Deus.
VIII. A Igreja e a secularização
Este é um dos maiores desafios que a igreja enfrenta nos dias atuais: a pressão do secularismo, que abre espaço para a perda dos valores cristãos e o questionamento dos princípios que fundamentam a fé. Percebe-se, aqui e ali, a infiltração sutil de conceitos e comportamentos estranhos, no seio da cristandade, que nada mais são do que um desvio da verdade, como advertiu Paulo a Timóteo sobre aqueles que contendem para perverter a fé dos ouvintes (2 Tm 2.14). Tal fenômeno, cada vez mais em evidência, é conhecido como secularização. O seu avanço no ambiente eclesiástico contemporâneo requer da parte da igreja uma posição não só de alerta e de prevenção, mas de permanente confrontação, mediante a afirmação coerente dos princípios bíblicos.
E essa postura é necessária para evitar que os efeitos nocivos desse estilo de vida solapem a fé dos crentes e os levem à perda da visão e da vida espiritual. Secularização e contextualização. O secularismo tem como proposta a rejeição de “toda forma de fé e devoção religiosas”, admitindo como lema de vida “apenas os fatos e influências derivados da vida presente”. Ele nega, por conseguinte, a influência das forças espirituais nas atividades humanas e reduz as circunstâncias do dia-a-dia exclusivamente ao esforço humano, excluindo, sob qualquer hipótese, a interferência divina.
Para o secularismo, “o homem, e somente o homem, é a medida de todas as coisas”. O apóstolo Paulo descreve com linguagem precisa, em 2 Timóteo 3.1-5, o tipo de comportamento que caracteriza os adeptos do secularismo. A identificação que abre a longa lista sintetiza de modo adequado os que aí se enquadram. São “amantes de si mesmos” (v.2), consideram-se o centro do Universo e ignoram Deus como o Agente da História. Por adotarem a filosofia existencialista em que o homem é o “arquiteto da sua vida, o construtor do seu próprio destino”, vivem ao sabor do que melhor lhes convém no momento, desde que sejam os beneficiados. Em razão disso, não hesitam em ser “presunçosos, soberbos, blasfemos” e até em assumir a aparência de piedade, mesmo que, interiormente, neguem a sua eficácia.
Sem falar na causa primária a introdução do pecado no mundo, o secularismo tem as seguintes causas, entre outras:
1) E fruto da educação nem sempre sadia ministrada nas escolas. Exemplo disso é a prevalência da teoria evolucionista nos currículos escolares em detrimento do criacionismo, ainda que ela não conte com nenhum respaldo científico comprobatório (I Tm 6.20).
2) Tem suas ligações com a opulência das riquezas (“avarentos”, v.2), que aparentam oferecer tudo quanto o ser humano precisa, sem necessidade de lançar mão dos recursos divinos.
3) Resulta da entrega obstinada ao hedonismo — o prazer pelo prazer (v.4), pelo qual até o ato de se alimentar reveste-se de uma liturgia deificada. “O deus deles é o ventre”, afirma Paulo (Fp 3.19).
4) Origina-se no mau uso dos meios de comunicação que endeusam o homem e educam a criança para se considerar “senhor absoluto de sua vida”.
5) E, ainda, fortalecida pela apostasia, que afasta o crente de Deus e o leva a nutrir a sua alma nos pecados há pouco mencionados. O secularismo predomina, hoje, em todos os setores da sociedade e tenta pôr os seus tentáculos dentro da igreja através da perversão dos ensinos bíblicos, procurando conceituá-los ao nível filosófico, sem valor algum para a fé (I Tm 4.1-5; 2 Tm 2.16-18; 4.3,4).
O secularismo, através de seus agentes, ramifica-se nos meios políticos, econômicos e sociais, 1nfiltrando-se em todas as áreas que exerçam influência e controle sobre a população.
Essa é a forma de predominar sobre as pessoas para torná-las presas de um mundo, onde, desde as compras no supermercado à aquisição do carro último modelo, as coisas se realizam na medida em que as pessoas são indiretamente controladas e pensam controlar a si próprias mediante o aparente poder que têm nas mãos.
A secularização eclesiástica, portanto, tem como espinha dorsal deixar de valorizar, dentro da igreja, as normas da fé para a vida, introduzindo no dia-a-dia cristão a mesma visão relativista que caracteriza a sociedade secular. Assim, pervertem-se os ensinos bíblicos, banaliza-se o sagrado, utiliza-se a fé com fins escusos e alimenta-se a ideia, por exemplo, de que a doutrina da santidade não tem importância. Haja vista, segundo acreditam os secularistas eclesiásticos, o importante ser o coração. Que os adeptos do secularismo torcem a verdade de Deus e buscam tornar a igreja uma instituição corrompida e secularizada, adotando os costumes do mundo, não há dúvidas. Mas não podemos confundir secularização com contextualização. Enquanto a secularização perverte o ensino bíblico e o corrompe com as vãs filosofias, a contextualização, destituída de qualquer valor secular e sem qualquer pretensão a inovações, procura entender como as Escrituras se aplicam ao contexto de hoje. Já que a Bíblia Sagrada foi dada ao homem numa época diferente da nossa e muitas vezes visando uma situação específica, é necessária a tal contextualização. Não se trata, aqui, de adaptar a Palavra, modernizá-la ou mesmo dar-lhe novo significado, mas de compreender como a mesma palavra fala ao homem atual. Ou seja, contextualizar é o mesmo que situar no contexto. A título de exemplo, Paulo assevera: “E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito” (Ef 5.18). É óbvio que o apóstolo não poderia se referir a outro tipo de bebida alcoólica que não fossem as existentes à época. Nesse caso, reportou-se à bebida comum aos povos de então para condenar a embriaguez. Contextualizar essa passagem para os dias de hoje implica aceitá-la como fonte normativa que condena também o uso de qualquer outro tipo de bebida alcoólica, embora isso não esteja explicitado no texto. Ao contrário disso, a secularização traz para dentro das igrejas a ideia da relativização, da falta de valores absolutos e eternos, como se os princípios bíblicos fossem moldados pelo caráter situacional de cada época. Por analogia, o auge do pecado de Belsazar, na Babilônia, foi secularizar, pela profanação, os utensílios sagrados do povo de Israel, fato que o levou a sofrer a ira de Deus (Dn 5). Consequências da secularização.
As consequências da secularização eclesiástica, no âmbito da igreja local, são:
1) A perda da identidade.
Os fundamentos são vilipendiados, a multiplicidade de concepções religiosas e humanistas toma o lugar das Escrituras, e o “som da trombeta” para empregar uma figura utilizada pelo apóstolo Paulo em I Coríntios 14.8 — não tem a precisão da ortodoxia bíblica, necessária para orientar os fiéis. O sonido é incerto. Como escrevi em meu livro A Transparência da Vida Cristã: Os emissários do Diabo travestidos de bons religiosos seguem a mesma linha e não se furtam de usar linguagem astuciosa ecumênica; para ser mais preciso, buscando defender a multiplicidade religiosa, que nada mais é que a repetição da velha ideia de que “todos os caminhos levam a Deus”.
A identidade cristocêntrica vai para o ralo nesse emaranhado (M t 7.21-23). 2) A forma passa a ser mais importante do que o conteúdo. Isso ocorre tanto no aspecto legalista, em que a aparência tem maior peso do que a vida interior (Cl 2.20-23), como no âmbito da liturgia, que privilegia qualquer tipo de expressão dita cultuai, em prejuízo da Palavra, desde que atraia as pessoas. Essa “onda” expressionista no meio evangélico envolve: rodas de capoeira, nos pátios de templos evangélicos; “trenzinhos” de auditório, na hora do “louvorzão”; linguagem mântrica, empregada por alguns animadores de culto; e até a inserção de elementos do judaísmo na liturgia cristã. E a primazia da emoção no lugar da razão (Rm 12.1,2). E a secularização do culto para agradar a quem não deseja submeter-se aos princípios normativos de vida revelados pelas Escrituras.
2) A terceira consequência leva à falta de compromisso bíblico.
Diferente dos princípios da Reforma Protestante, que trouxe as Escrituras para o seu lugar de honra, o espírito do secularismo na igreja lida com a Palavra como se fosse um mero acessório circunstancial. A melhor pregação, hoje, em alguns arraiais, não é a expositiva, que valoriza a exegese e a busca dos princípios bíblicos. Está em alta a que apela para as frases de efeito, porém não se atém a conteúdo bíblico; a que oferece vantagens espirituais, e não realça o significado do compromisso cristão; a que emprega recursos para mexer com as emoções, e não fala ao entendimento (I Co 14.20). São palavrórios inconsistentes, contra os quais Paulo repetidamente adverte (2 Tm 2.14,16,17,23,24). E a pregação descartável. Usou, joga fora. H á também o perigo dos que se deixam conformar-se. Isto é, aceitar fazer o jogo de Satanás para o mundo, pois, quanto mais se racionaliza a fé em bases humanas, tanto mais o reino das trevas encontra espaço para avançar em seu intuito de escravizar a humanidade. Tentar anular a crença em Deus é a mais perigosa das artimanhas malignas contra a qual a igreja precisa estar devidamente dotada da graça e do poder de Cristo para enfrentá-la (Ef 6.10-20). Como combater a secularização. Ainda que hoje a tendência de certos segmentos do meio evangélico seja o contrário, é necessário compreender que não se pode, jamais, abrir mão do primado da Palavra na vida da igreja. A recomendação de Paulo é bastante incisiva: o obreiro precisa manejar bem a Palavra da verdade (2 Tm 2.15).
A expressão “manejar bem” é a tradução do vocábulo grego ortbotomeo, que significa literalmente “cortar em linha reta”, com o sentido de ensinar a verdade de forma direta e correta. Não só a ênfase do Novo Testamento é para a Palavra de Deus, mas os próprios apóstolos tinham como prioridade ensiná-la a tempo e fora de tempo ao povo (At 6.4; 8.25; I I.I; 12.24; 2Ts 3.1). Só a valorização das Escrituras pode conter o avanço da secularização nos meios eclesiásticos. Infelizmente, também, há aqueles que fazem concessões ao mundanismo usando a “contextualização” como justificativa. Mas, como vimos há pouco, há uma diferença bastante clara entre a verdadeira contextualização e a secularização.
Aplicar no contexto de hoje a mesma Palavra de Deus revelada em outro contexto jamais significará a perda da autenticidade cristã. Vale empregar, aqui, outro exemplo: a Carta aos Gálatas. Nela o apóstolo condena os que tentavam impor o rito judaico sobre os gentios, com ênfase para a circuncisão. Ora, a mesma Palavra se aplica aos que atualmente ensinam a prática de qualquer outro rito como acréscimo necessário à graça para a salvação. Isso é contextualizar as Escrituras. Entretanto, não se pode usar essa tangente como justificativa para negar os valores normativos da própria Palavra de Deus e fazer concessões ao pecado. Isso é outra coisa: secularização. É uma ação maligna para minar as forças dos crentes. Não podemos, consequentemente, perder de vista a grande verdade da fé: o fundamento do evangelho é inalterável. Paulo ressalta, em 2 Timóteo 2, três características desse alicerce:
- O Senhor conhece os que são seus.
- Aqueles que lhe pertencem confessam o nome de Cristo.
- Os servos fiéis apartam-se da iniquidade (v. 19).
Estes são considerados vasos de honra para a glória de Deus (vv.20,2I). Todavia, mesmo aqueles que têm sido vasos para a desonra, são chamados ao arrependimento, para que não sirvam mais ao mundo, desprendam-se dos laços do Diabo e se voltem à verdade do evangelho (vv.24-26). A defesa da fé que “uma vez foi entregue aos santos” é parte intransferível das responsabilidades da igreja.
Um dos grandes segredos da sua vitória em meio às ferozes perseguições do império romano, nos primeiros séculos, foram os apologistas, que se dedicaram a defender o evangelho em bases escriturísticas elaboradas de forma argumentativa. E o que chamamos de “apologia”, palavra de origem grega que significa discurso verbal ou escrito, com argumentos razoáveis, em defesa de uma tese. Paulo empregou o vocábulo “apologia” na sua forma substantiva ou verbal diversas vezes, não só quando fez a sua defesa diante dos tribunais de Roma (At 22.1; 25.16; 2 Tm 4 .I6 ), ou em defesa do seu apostolado (I Co 9.3), mas também quando se referiu ao seu papel em defesa do evangelho (Fp 1.7,15,16). O mesmo emprego do termo fez o apóstolo Pedro, quando instou-nos a responder com mansidão àqueles que nos pedirem a razão de nossa esperança (I Pe 3.15). A igreja precisa, hoje, de homens que se dediquem a confrontar não só o secularismo, mas toda sorte de heresias que têm penetrado sorrateiramente no meio do povo de Deus. Assim como Paulo considerou-se chamado para a defesa do evangelho (Fp I .I 6), da mesma forma os crentes atuais receberam de Deus essa convocação. Fechar as portas à secularização é dever de todos os cristãos. Priorizar o primado da Palavra na igreja ainda mais. Estar vigilante contra as sutilezas malignas que tentam introduzir-se no meio dos fiéis.
Valorizar os princípios bíblicos. Tudo isso se constitui numa forma legítima de conter o mundanismo, crendo, de fato, que as portas do inferno jamais prevalecerão contra a Igreja.
IX. A Igreja e o poder político
O povo evangélico, em razão do seu acelerado crescimento, deixou de ocupar posição secundária na sociedade. Ele agora é visto como força social emergente, cujos votos podem, inclusive, alterar o resultado de uma eleição. Por outro lado, é natural que muitos de seus membros, à medida que ela se torne um segmento representativo, ocupem cargos eletivos e outros espaços na esfera pública.
Vale lembrar que as lições do passado precisam ser revistas, principalmente da época do imperador romano Constantino, a fim de que a igreja evite a cilada de buscar para si uma missão que não lhe cabe o poder temporal, mas também não se aliene, como se já estivesse no Céu, e não mais na Terra. A armadilha dos fariseus. O texto bíblico que melhor se aplica a esse assunto é Mateus 22.15-22, que trata da armadilha dos fariseus para surpreender o Mestre na questão do pagamento de impostos ao império romano. Por não discernirem as profecias do Antigo Testamento, eles não admitiam que a mensagem do Senhor acerca do Reino não correspondesse à expectativa judaica de libertação política (Jo 18.36).
Como o propósito era apanhar Jesus em alguma contradição (v. 15), é provável que os fariseus, ao levantar a questão, tivessem em mente duas coisas:
1) Se Jesus concordasse de forma unilateral com o tributo romano, poderia estar invalidando sua suposta mensagem messiânica de redenção política, como provavelmente pensavam os fariseus. Seria, então, um bom motivo para incitar o povo contra Cristo, por estar propondo a libertação da Israel, mas, ao mesmo tempo, defendendo os interesses do império romano.
2) Caso Jesus questionasse a tributação, opondo-se às forças romanas, contariam, por outro lado, com um bom argumento para acusá-lo de sublevação contra a ordem constituída. Os fariseus foram, também, astuciosos na maneira de introduzir o assunto (v. 16). Como hipócritas, tentaram induzir o Mestre ao egocentrismo, usando o elogio fácil, que reconhece de forma demagógica as virtudes alheias, porem com propósitos escusos. O uso da astúcia é algo muito comum, hoje, não só nos meios políticos, mas até mesmo entre cristãos, em que as palavras são ditas com diferentes significados, ao sabor das circunstâncias. Isso “facilita” a vida dos pregadores que não têm compromisso com a verdade, os quais ficam à vontade em sua hipocrisia para se ajustarem a cada significado, dependendo das circunstâncias, sem se comprometerem, até que sejam desmascarados (Mt 5.34-37). Observa-se a conotação política da pergunta farisaica na questão proposta (v. 17). Quando se referem a César, reportam-se à instituição política máxima da época, pois se tratava de um título dado aos imperadores romanos. O que estava implícito, na verdade, era o nível de relacionamento político entre a nação judaica e o poder dominante. Até que ponto, para os judeus, pagar ou não tributos constituía-se na síntese do que mais os afetava: a dominação romana. Não há nenhum erro em o crente, como cidadão, estar a par dos assuntos da esfera civil que afetem a sua vida. E lícito, também, exercitar os direitos de cidadania e contribuir para que o país prospere, desde que as motivações sejam corretas e não haja intenções dúbias (Rm 13.1-17). O problema passa a existir quando os propósitos são outros, como no caso dos fariseus, e a igreja perde a sua identidade por assumir para si um papel que não lhe pertence: o poder temporal.
A clareza da posição do Mestre. Ele discerniu a armadilha dos fariseus (v. 18), bem como as razões que motivaram a pergunta. Ao líder (e aos crentes de modo geral) não basta discernir apenas na esfera natural, porque, às vezes, as origens dos problemas humanos estão no mundo sobrenatural. Daí porque, da lista de dons espirituais constante da Bíblia, o dom de discernimento é indispensável àqueles que lideram o rebanho de Deus (I Co 12.1־ II). Muitas dificuldades ocorrem porque se consulta primeiro à “carne e ao sangue”, e não ao Espírito (At 15.28). Em razão disso, o Senhor teve uma postura de decisão (vv.I9-2I). Ele soube como agir diante daquele quadro. Primeiro, percebeu a hipocrisia farisaica. Depois, deu uma resposta que serve como padrão para a igreja em todos os tempos: os crentes, como cidadãos, cumprem seus deveres civis e políticos dão a César o que é de César.
O dever de cidadania está implícito aqui. Como igreja, eles mantêm sua lealdade suprema a Deus (dão a Deus o que é de Deus), andando na verdade, denunciando o pecado, seja em que esfera for promovendo a justiça, vivendo a espiritualidade, proclamando as virtudes do Reino e combatendo o mal (I Pe 2.9,10). Como a igreja lida com 0 poder político. Fica claro, portanto, que a igreja e o poder político situam-se em pólos distintos. A História revela que, a partir da “constantinização” da igreja histórica, à medida que a relação entre ambos se tornava cada vez mais comprometida e promíscua, a igreja sempre ficou no prejuízo.
Além da perda da identidade, como afirmado há pouco, ela abriu espaço para o avanço do nominalismo pela “conversão” dos que buscavam as benesses do poder temporal através da via eclesiástica. Tornou, também, propício o ambiente para a corrupção do clero e chegou aos níveis mais baixos de obscurantismo, quando as fogueiras da Inquisição foram usadas para tentar calar as vozes que combatiam seus erros. Cabe à igreja conscientizar os crentes sobre o seu papel na sociedade e lhes oferecer, através do ensino bíblico, a oportunidade de obter formação cristã e sadia para o exercício da cidadania.
Afinal, estamos na Terra, pagamos os nossos impostos e devemos ter interesse no bem comum, da mesma forma como Deus orientou o povo de Israel a agir no cativeiro babilônico (Jr 29). Mas foge aos objetivos da igreja, como instituição divina, como ente espiritual, participar de projetos que tenham como fim a conquista para si do poder político (At 1.6-8; Rm 14.17). E postura condenável, portanto, envolvê-la na luta partidária, que gera facções e chega até mesmo a transformar indivíduos em inimigos mortais. Muito menos prometer os votos do rebanho em troca de benefícios pessoais evidencia corrupção ou coletivos, que são uma obrigação do Estado.
A ação da igreja no mundo, face ao poder político, se orienta pelo seu compromisso em proclamar as virtudes do Reino de Deus (I Co 4.20). Dessa forma, acima das estruturas políticas, ela propugna para que sua mensagem afete todos os setores da sociedade, inclusive o político, e influencie de modo justo, cristão e bíblico as decisões que estão sendo tomadas. Este é o referencial para os crentes que ocupam cargos públicos eletivos ou não. Eles fazem parte da igreja e, por isso, devem portar-se à luz de seus princípios, sendo instrumentos de transformação onde quer que estejam. Mas não é a igreja que está ali assentada para pactuar-se com o poder temporal. Esse não é o seu foco. Assim, não lhes cabe usá-la para justificar compromissos que se circunscrevem única e exclusivamente ao terreno público ou político. “A César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” (v.2I). Os homens públicos que professam a fé bíblica precisam estar conscientes de que em nome da igreja falam os seus líderes legitimamente constituídos e ordenados por Deus, não para comprometê-la com o sistema, mas para posicionamentos sobre fatos que exijam a manifestação de sua voz profética (At 20.28). Por sua vez, os crentes em tais posições devem orientar-se pelo conteúdo ético do Reino de Deus (Mt 5.7), para que sejam instrumentos da presença abençoadora da igreja no mundo e contribuam em favor do bem comum através de ações eticamente legítimas, propugnando por leis justas e sendo exemplo de cristianismo bíblico em sua vida pessoal.
E interessante ressaltar que, nessa abordagem, os nossos olhos sempre se voltam para os cargos eletivos, isto é, aqueles que são exercidos mediante o voto. Mas não é só aí que atuam os cristãos. Eles estão presentes nas salas de aula, nas administrações públicas de modo geral, e precisam adotar a mesma linha de conduta aqui preconizada no exercício de suas funções.
Entendo, por fim, que trocar a chamada ministerial pela vida pública é abrir mão de uma vocação suprema pela transitoriedade dos cargos humanos.
A Bíblia deixa claro que os obreiros de tempo integral, aqueles que são chamados para se dedicarem ao trabalho pastoral, devem viver do evangelho, e não se embaraçar com os negócios desta vida, seja de que espécie for (I Co 9.7; 2 T m 2.4). Não sejamos reducionistas a ponto de ver nisso apenas uma condenação ao envolvimento político. Paulo engloba, em sua advertência, tudo quanto implica embaraço ao exercício do ministério.
Vale aqui a mesma posição dos apóstolos, que não quiseram se envolver nos negócios cotidianos da igreja para continuarem no exercício do ministério da oração e da Palavra (At 6.1-5; 2 T m 2.1-5).
Os obreiros têm uma tarefa maior a cumprir; plantar, cultivar e colher para o Reino de Deus.
X. A Igreja e a colheita de almas para o Reino de Deus
Muitos são os modelos adotados pelas igrejas locais no propósito de cumprir a missão primordial da igreja: ganhar e acolher as almas no aprisco. Diga-se de passagem, nenhum modelo humano é perfeito e jamais pode ser apresentado como a “única” e definitiva fórmula para o crescimento de uma igreja. Isso é sectarismo.
Todavia, há uma lição básica que aprendemos na Bíblia: e esta sim legítima e perfeita na propagação do Remo de Deus. É a lei da semeadura e da colheita, que sugere estratégias eficientes que podem ser adotadas para uma ação de grandes e abençoados resultados.
A igreja e o princípio da semeadura. Essas estratégias estão implícitas no episódio da passagem de Jesus por Samaria, que serviu para ensinar aos discípulos a importância da ceifa no contexto da igreja. Rumando em direção ao Norte (Jo 4.3), o Mestre deixara a região desértica de Israel e entrara na parte agricultável do país. Ali, tendo como cenário os campos plantados, aguardando a hora da colheita, uma cidade foi alcançada em apenas dois dias, com as boas novas do Reino (Jo 4.39-42). Com esse quadro fértil diante dos olhos, faltando, ainda, quatro meses para a ceifa, Cristo aproveitou a oportunidade para mostrar que a colheita do evangelho é sempre urgente. Não pode ser protelada (Jo 4.35). Outra lição que também se extrai do episódio é a necessidade de conhecimento para uma boa semeadura, que resulte em abundante colheita, principalmente em Israel, onde havia bastante escassez de água, com o país cortado por colinas rochosas e excesso de pedras nas áreas férteis.
Isso obrigava os agricultores a serem criativos, cavando reservatórios para reter as águas das chuvas (2 Cr 26.10) e descobrindo técnicas propícias ao cultivo, como o uso da lei da gravidade para que as águas reservadas chegassem aos campos plantados.
Hoje, a modernização da tecnologia permite que Israel e países com a agricultura desenvolvida disponham de sistema de irrigação comandados por computadores, mediante o qual cada semente recebe milimetricamente todos os dias, na hora certa, a quantidade de água necessária para frutificar. Nem mais nem menos. Além do conhecimento (Mt 16.2,3), que se aperfeiçoa a cada dia, a semeadura produtiva requer um bom preparo da terra.
Nos tempos bíblicos, lavrava-se a terra com arados de madeira ou ferro, os quais eram puxados por juntas de bois, conduzidas pelo lavrador (I Rs 19.19-21). Atualmente, equipamentos sofisticados fazem o mesmo trabalho, ganhando tempo e baixando os custos de produção. A plantação, por sua vez, requer boa escolha de terra e clima adequados à espécie que se deseja plantar. Há plantações apropriadas ao clima frio e a regiões montanhosas, enquanto outras só frutificam em climas tropicais e terreno plano. Cada espécie, por conseguinte, exige uma forma de sementeira e cultivo para que os resultados sejam mais proveitosos. Ou seja, não se faz a semeadura a esmo, de modo dispersivo, como se estivesse simplesmente cumprindo uma obrigação enfadonha.
Não é jogar os folhetos na rua e esperar que “floresçam”. E preciso mais do que isso.
Em sua passagem por Samaria, Jesus aplicou todos os recursos possíveis para obter uma boa colheita.
- Ele buscou o coração da mulher samaritana, cujo estado moral propiciava um bom terreno para plantar a semente do evangelho.
- O Mestre não iniciou seu diálogo fazendo críticas a ela, mas usando como ponto de contato a sua ida ao poço de Jacó para apanhar água, preparando assim a “terra” para tomar frutífera a mensagem.
- Ele tratou com ela, passo a passo, até que estivesse pronta para crer em sua messianidade.
- Jesus a viu como um instrumento capaz de impactar os samaritanos com a fé, em virtude de seu estado anterior à conversão (Jo 4.1-30).
O resultado foi uma boa colheita para o Reino de Deus, na cidade de Sicar, de cuja semeadura os discípulos não participaram, porém estavam agora recebendo os méritos da ceifa (v.38). A igreja e as implicações da semeadura.
A lição ensinada pelo Mestre implica em a igreja compreender o sentido de urgência da semeadura. Ele poderia chegar à Galileia, seu destino final naquela ocasião, por outras vias de acesso. Até mesmo para evitar a hostilidade dos samaritanos, rivais milenares dos judeus (Jo 4.9). Sua passagem por Samaria, todavia, não foi obra do acaso, e sim fruto de uma decisão amadurecida (Jo 4.4) de quem vê o mundo como um imenso campo a ser urgentemente lavrado, semeado e ceifado (Mt 13.38). Ele viu ali uma necessidade e tomou a decisão de passar por lá para supri-la. Quando se fala em semeadura, a ideia ficaria incompleta se não se pensasse em colheita. A Bíblia é rica em ilustrações que revelam tratar-se de etapas que se completam. Não basta lavrar a terra e semear.
É preciso colher.
Trata-se de um erro pregar e largar ao abandono a sementeira. Enfatizam-se muito os resultados qualitativos, e estes, de fato, não podem ser esquecidos.
A qualidade do que se faz é, em si, uma boa forma de atrair as pessoas. Mas os resultados quantitativos contam, sim, para o Reino de Deus (Sl 126.5,6).
A colheita tinha tanta importância na vida do povo de Israel que as primícias eram consagradas a Deus, como ato de gratidão (Lv 23.9-14).
A igreja preparada para a colheita. Diante do exposto, verifica-se que a igreja precisa estar preparada não só para a semeadura, mas também para a colheita. Isso implica ter um projeto de vida integrado, que tenha por objetivo obter resultados eficientes em seu trabalho. O que inclui planejamento, estrutura, preparação e ação. Como pensar, por exemplo, numa grande colheita se não há depósitos suficientes para guardar os grãos? Esta, sem dúvida, foi uma das primeiras providências de José, quando assumiu o posto de governador do Egito (Gn 41.46-49). A título de reflexão, como funcionam os departamentos de cada igreja local? Eles estão integrados a uma filosofia de trabalho implantado pela igreja, ou cada um age como se fosse um feudo de propriedade particular por falta de um projeto de vida? A Escola Bíblica Dominical cumpre a sua missão como a principal agência de ensino da igreja, ou existe apenas para constar no organograma? A Secretaria de Missões está inserida na execução de um programa missionário da igreja, ou desenvolve projetos de sua particular iniciativa, em razão de esta se desobrigar de suas responsabilidades? Outra pergunta para reflexão: A abertura de novas congregações é feita à luz de um planejamento que mobilize a igreja para a nova semeadura, ou apenas cumpre a rotina de reuniões vazias que não impactam a comunidade? Por outro lado, como desenvolver um programa de evangelização dos drogados, se depois a igreja não sabe como recuperá-los? Como buscar as prostitutas nos prostíbulos, se depois não há como integrá-las à vida social? Como tirar os mendigos das ruas, se depois não há como restaurá-los? Afinal, depois de convertidos, eles não desejarão continuar debaixo das marquises e, sim, abrigar-se em algum lugar para serem curados até que possam viver uma vida normal. Em síntese, os resultados de uma boa lavoura só aparecem quando as três fases do processo se completam: semear, cultivar e colher (I Co 3.5-9). Seria algo como ganhar as almas, discipulá-las e integrá-las na vida da igreja. Organizar-se, portanto, é bíblico. Planejar também o é. Preparar-se para a colheita muito mais. E executar o que foi planejado é a tarefa primordial. Estamos no tempo da semeadura e da colheita. Ela é simultânea. Muitas vezes uns semeiam, enquanto outros colhem. O trabalho, no entanto, precisa ser feito. Esse é o projeto de vida da igreja para o qual todas as suas forças precisam ser mobilizadas. A igreja ideal é uma meta. Muitas não chegaram, ainda, a esse padrão, mas perseverar em buscá-lo é um dever, para que o Reino de Deus seja recebido nos corações humanos e, assim, a Igreja com todos os seus santos possa ao final desta era adentrar ao seu destino final.
XI. A Igreja e seus símbolos.
São várias as metáforas para ilustrar a natureza da Igreja, de seus membros em particular e de seu relacionamento com Cristo. Este é um recurso de linguagem que traz luz ao nosso entendimento e ajuda na apreensão dos conceitos expostos. O simbolismo é uma das riquezas da literatura bíblica, como as descritas no Evangelho de João. Ali, entre outras figuras de linguagem, o Senhor é apresentado como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (1.29); a porta de entrada ao pecador arrependido à dimensão da fé cristã (10.9); o Bom Pastor (10. I I) , que cuida com zelo e amor de suas ovelhas; e a videira verdadeira (I5 .I), que nutre os ramos com a seiva do Espírito. Entre as metáforas que tratam da Igreja, há três que melhor contextualizam a visão atual de sua missão terrena: Noiva, Templo e Corpo.
A Igreja como Noiva de Cristo. Esta primeira alusão remete à importância que as Escrituras dão ao matrimônio como instituição divina, quando o compara ao relacionamento entre Cristo e a Igreja (Ef 5.24-27). E primordial na Igreja fortalecer o casamento; isso porque há uma ação em curso, orquestrada pelo Maligno, para desgastá-lo por ser, em primeiro lugar, a estratégia que melhor serve ao Inimigo no seu famigerado propósito de tentar destruir o plano de Deus para o homem. Em segundo lugar, o desgaste do casamento desmoraliza a instituição que melhor representa o tipo de comunhão que Cristo mantém com a sua Noiva, no presente, e a perspectiva da vida que ambos desfrutarão na era vindoura (Ap 19.7,8). Outra lição desse rico simbolismo é a da sujeição da Igreja a Cristo (Ef 5.24). O apóstolo Paulo a usa para exemplificar a mesma atitude da mulher para com o marido.
No entanto, a ideia aqui não é a de uma sujeição imposta pela força ou por uma decisão unilateral e legalista da esposa. É fruto do amor intenso dedicado pelo esposo, que produz nela profundo sentimento de afeto, resultando no reconhecimento espontâneo de sua sujeição posicionai. E assim a relação de Cristo com a sua noiva. O amor que Ele lhe devota é tal como demonstrado no ato da redenção que ela se sente espontaneamente constrangida a ser-lhe eternamente fiel e a viver sob sua abençoada liderança (2 Co 5.14,15).
Outro detalhe expresso no símbolo é que a pureza da Igreja como Noiva resulta da entrega do Senhor por ela (Ef 5.26,27). E Ele quem a santifica, purifica e a torna imaculada e irrepreensível. Não é um ato intrínseco da Igreja, que, por si mesma, possa desenvolver essas qualidades da vida cristã. Ela depende de estar abrigada sob o amor do noivo e ter a noção exata da grande compaixão implícita nessa entrega. Só assim poderá viver essas características e apresentar-se, no dia das Bodas, como Igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante! Esse é o comportamento que Deus espera dos cônjuges. O amor do marido pela esposa deve evidenciar-se de tal maneira, não só por palavras, mas acima de tudo por atos. Com isso, a mulher se sente prazerosamente motivada a manter a sua pureza interior, bem como as suas qualidades morais e físicas, para que ambos tenham, por toda a vida, plena satisfação na união conjugal. Assim, estarão dando um testemunho sem palavras, na dimensão humana, do que representa, no nível mais sublime, a comunhão entre Cristo e a Igreja (Ef 5.32). A Igreja como Templo de Deus. A Igreja como Templo de Deus traz a ideia subjacente da construção de um edifício que se ergue sob as rigorosas normas da engenharia “bem ajustado” (Ef 2.21).
Aqui se evidenciam duas coisas:
Quem normatiza e aplica os detalhes técnicos da obra é o engenheiro responsável; este princípio denota a mesma responsabilidade no trato de Cristo com a Igreja. As normas partem dEle e já estão reveladas na Bíblia, não podendo ser substituídas por suposições humanas, sob pena de fazer ruir todo o edifício (Cl 2.20-23).
2) A Igreja foi projetada como lugar da habitação do trono de Deus, que, mediante o Espírito Santo, envolve-se em toda a sua peregrinação histórica. O projeto, portanto, pertence ao Pai; a execução, ao Filho; e o acompanhamento, ao Espírito Santo (Ef 3.9; Mt 16.18; Jo 14.16,17,26). Outro desdobramento cabível aqui é a doutrina da transcendência e da imanência de Deus.
Em sua transcendentalidade, Deus é chamado de Altíssimo, haja vista habitar “em um alto e santo lugar”. Todavia, ao mesmo tempo em que o Céu dos céus é a sua eterna morada, identifica-se também como o Deus imanente, que habita “com o contrito e abatido de coração” (Is 57.15). Deus é aquEle que, durante o dia, acompanhava Israel através de uma nuvem e, durante a noite, se fazia presente através de uma coluna de fogo. Hoje, sua presença é sentida na igreja mediante o poder do Espírito Santo. Mais um conceito implícito no símbolo do Templo é o de que faz parte da natureza essencial da igreja adorar a Deus. Este é o sentido do verbo “cultuar”. Nesse caso, a adoração não deve passar para o plano secundário ou mesmo terciário, tampouco esquecida. Deus deve se destacar no culto ocupam e ser o centro das atenções.
No culto a Deus deve haver reverência, mas esta não deve ser confundida com formalismo. A Noiva do Cordeiro é também o Templo de Deus, no sentido coletivo, e deve adorá-lo na beleza de sua santidade. Desse modo, o Espírito Santo terá liberdade para atuar (I Co 14.26-33). A Igreja como Corpo de Cristo. A Igreja é também um Corpo. Este simbolismo traduz a ideia de que são diversos órgãos e muitos membros, mas todos trabalham de forma orgânica e harmônica, interligados, em benefício do Corpo de Cristo ( I Co 12.12). Vale a pena reiterar: ninguém trabalha em favor de si. Qualquer ação de um órgão ou membro em corpo saudável está relacionada com toda a estrutura orgânica que sustenta a vida. E acima está a Cabeça o cérebro no comando. Assim são as igrejas. Elas somam milhões de membros no mundo. Quando todos cumprem a sua parte, elas se beneficiam, mas, se algum de seus membros está enfermo espiritualmente e não é logo restaurado, afeta o “corpo”. Haja vista inúmeros exemplos que promovem escândalos e trazem má fama ao povo de Deus. E responsabilidade de todos os crentes trabalharem de forma orgânica e harmônica, interligados, em favor do crescimento, saúde e fortalecimento da igreja, tendo Cristo como Cabeça, na liderança (Ef 1.22,23).
Sem nenhum exagero, a igreja atual precisa ser mais “corpo” e menos “indivíduos”. Todavia, esta ideia não anula a utilidade de cada membro em particular. Todos cumprem uma atividade regular e indispensável no processo da vida. Se algum deles, por qualquer motivo, para de trabalhar, o “corpo” ressente-se de sua inatividade. Essa é visão que norteia a nossa presença na Terra (I Co 12.14,27).
Muitos crentes, por não entenderem corretamente esse princípio, sentem-se inúteis e não se envolvem no serviço cristão. Mas, se todos se impregnarem do senso de utilidade, a vida de oração será aprofundada, não faltarão recursos para a expansão do Reino, a evangelização será mais rápida, a obra missionária não andará a passos lentos, a unidade não se constituirá em utopia, e a igreja terá relevância no mundo (I Co 15.58). Como a Noiva de Cristo, a Igreja tem o Senhor como fonte de sua pureza espiritual. Como Templo de Deus, ela é o lugar santo da habitação dEle na Terra e tem o compromisso de permanentemente adorá-lo. Como Corpo de Cristo, bem ajustado, cada membro cumpre com alegria a sua responsabilidade em benefício do Corpo. Assim, a igreja vive a plena espiritualidade no mundo.
XII. A Igreja ε a espiritualidade
O grande desafio da igreja, agora, é como viver a sua espiritualidade, no dia-a-dia da vida cristã, com as suas múltiplas circunstâncias. Ocorre que, em virtude da relação conflituosa entre a carne e o espírito, da falta de uma visão objetiva da mesma graça como fonte de santificação e da ausência de equilíbrio entre a esperança do mundo vindouro e a vida aqui e agora, surgem graves desequilíbrios na caminhada histórica da igreja. No primeiro caso, a carne opta pelo hedonismo, enquanto o espírito anseia pela espiritualidade.
No segundo, a tendência é impor a santificação através do legalismo e, com isso, anular o poder da graça como sustento da caminhada cristã.
No terceiro, ora enfoca-se a esperança da vida eterna como algo que exclui qualquer compromisso com a vida no mundo, ora leva-se ao extremo a visão do aqui e agora, anulando-se a santa expectativa do glorioso e definitivo estabelecimento do Reino de Deus na História. A verdade, porém, é que não há como fugir dessas questões. Elas afetam diretamente não só a maneira como se lida com o viver cotidiano, mas também a forma como se estabelecem os horizontes.
Que caminhos correspondem aos princípios bíblicos para uma vida de espiritualidade?
Em que consiste o papel da igreja, enquanto no mundo, diante de temas como justiça social, cidadania, vida profissional e áreas afins, principalmente nesta era pós-moderna em que prevalece a visão relativista?
Como interagir com a sociedade sem comprometer os valores do Reino de Deus, sem deixar de influir em todos os segmentos?
A igreja e a dimensão da espiritualidade.
Saber em que consiste a verdadeira espiritualidade é o ponto de partida para que a igreja tenha o correto posicionamento diante de tudo quanto se relaciona à vida terrena.
Mas, o que significa isso?
1) O estereótipo pentecostal enfatiza unilateralmente as expressões de alegria emocional e as supostas manifestações do Espírito nos cultos como sinônimos de espiritualidade.
2) O tradicionalista, no outro extremo, valoriza os seus aparentes temor reverente e a piedade.
3) O estruturalista pressupõe que ser espiritual é interessar-se pelas transformações das estruturas sociais. Onde está a verdade?
O apóstolo Paulo define a espiritualidade em Romanos I2 .I como um sacrifício vivo no altar de Deus. E prestar culto ao Criador. É mais do que simplesmente a prática litúrgica, a compenetração piedosa, a celebração coletiva nas reuniões da igreja. É entrega plena do ser espírito, alma e corpo ao serviço do Altíssimo. E a certeza de que tudo quanto se faz é para Deus sob a perspectiva da adoração consciente em todas as coisas, mesmo naquelas aparentemente sem importância alguma (I Co 10.31). Bem dizia o pastor e teólogo João de Oliveira: Adora-se ao Senhor até no ato de remover urna casca de banana da calçada.
Tal gesto impede que alguém criado à imagem e semelhança de Deus, ao passar por ali} venha a acidentar-se. Aduz-se, portanto, que a espiritualidade não é estanque, compartimentada, para ser vivida apenas numa dimensão. Ela engloba toda a vida. Não há como estabelecer, do ponto de vista da verdade teológica, qualquer linha divisória entre o sagrado e o secular, que enseje tratar cada uma das situações de maneira distinta. Não há paredes para a vida cristã, como se houvesse um tipo de atitude exclusivo lá para dentro, no âmbito interno da igreja, e outro cá para fora, “Em todo o tempo”, diz a Bíblia (Ec 9.8). Espiritualidade que se expressa apenas nos aparentes limites do culto coletivo é hipocrisia. E farisaísmo. E sal dentro do saleiro. É luz dentro da redoma. Não se percebem seus efeitos na sociedade.
Quando, no sermão do monte, o Mestre qualifica os cristãos como sal da terra e luz do mundo está implícita uma espiritualidade plena, sem fronteiras, que alcança todas as áreas. Em outras palavras, todos os atos do cristão a denotam (Mt 5.13-16). A igreja, a espiritualidade e a justiça social. Se a espiritualidade é o pressuposto da vida da igreja em qualquer circunstância, o que se espera dela, por exemplo, em relação à justiça social? A discussão, aqui, não se dá no campo ideológico, visto que provado está as ideologias carregam a mesma semente de egoísmo que perpassa a raça humana desde o princípio. O foco está em como contribuir, em meio à corrupção do gênero, para que haja menos desigualdades sociais, sem que isso signifique, de um lado, a supressão da propriedade individual, pois o direito a ela tem fundamento bíblico, e de outro, a posse de riquezas sem reconhecer a sua função social, também embasada em princípios escriturísticos.
Cabe observar que, no Antigo Testamento, há perfeito equilíbrio entre ambas as posições. O Pentateuco preserva o direito à propriedade, mas ao mesmo tempo dá a ela função social através de leis específicas referentes ao uso da terra e ao pobre, com o objetivo de lhe permitir acesso aos meios de sobrevivência. Já os profetas condenam com veemência a posse desmedida que satisfaz o próprio umbigo, mas leva a pessoa a esquecer-se do bem-estar do próximo. No Novo Testamento, nos primórdios da igreja, Ananias e Safira são julgados não por trazerem aos pés dos apóstolos apenas a metade do valor da propriedade vendida, mas pela motivação errada, que os leva a mentirem ao Espírito Santo. Nenhum erro haveria em reter a outra metade, pois o apostolado não fez imposição alguma sobre isso.
Houve, sim, um movimento voluntário entre os crentes primitivos que, movidos pela verdadeira espiritualidade, se dispuseram a abrir mão de seus bens em favor de toda a comunidade. Percebe-se, portanto, que o casal agiu por egoísmo, para obter algum reconhecimento humano, não havendo mérito espiritual algum em sua devoção. O que se deseja afirmar, aqui, é a legitimidade de o cristão possuir bens materiais sem que, necessariamente, tenha de abrir mão deles para cumprir a verdadeira espiritualidade.
Todavia, o outro lado da moeda revela que é preciso estar consciente de que tudo quanto possui é para a glória de Deus mediante a disposição de usar o que tem para o bem-estar do próximo. Esse é o contexto em que Tiago se reporta aos empresários cristãos que espoliam os empregados. Fica bastante claro no dizer apostólico que lhes cabe expressar a verdadeira espiritualidade através de remuneração justa que ofereça aos trabalhadores condições de vida condizentes com suas necessidades pessoais e familiares (Tg 5.1-6). Mas há também o reverso. Quando Paulo menciona os cristãos que serviam como servos na cultura de então, admoesta-os a servirem como se fosse ao Senhor, ou seja, com a máxima dedicação (Cl 2.22.23). Os funcionários cristãos de hoje, movidos pela mesma espiritualidade, exercem a profissão como se estivessem trabalhando para o próprio Deus. Não podem ser espoliados, mas também não surrupiam o tempo pelo qual são justamente pagos. Portanto, a não conformação com o mundo, de que falou o apóstolo Paulo em Romanos 12.2, não tem apenas implicações quanto aos valores morais, mas abarca também o inconformismo com toda sorte de injustiça, que é, em suma, o resultado da entrada do pecado no mundo. Quem reconhece a vida como uma dádiva da misericórdia de Deus e se compromete em entregá-la incondicionalmente à soberania divina, no altar do sacrifício, não folga com o individualismo egocêntrico, mas interessa-se alegremente pelo bem comum, uma forma de manifestação da espiritualidade. A igreja; a espiritualidade e a cidadania. Esta é outra área em que, ainda, há pouca consciência a respeito.
A ideia de uma igreja que apregoa uma vida cristã compartimentada enseja posicionamentos duvidosos, nos quais transparece não haver qualquer compromisso com o aqui e agora. A máxima para justificar tais posturas é a de que “o mundo vai de mal a pior” e nada é possível fazer para melhorar este quadro. Sob esse ponto de vista, resta tão-somente aguardar a bem-aventurada esperança e alienar-se da realidade em volta. Mas aqueles que assim pensam continuam comprando, vendendo, construindo casas. A máxima só vale quando se trata do envolvimento com as questões sociais, políticas e civis que afetam a sociedade. Essa é uma meia-verdade.
É óbvio que a esperança do cristão é o mundo vindouro. A expectativa do estabelecimento definitivo do Reino de Deus na história nutre a fé de todos que professamos o nome de Cristo. Mas enquanto essa época não chega, cabe a cada crente viver na presente era a espiritualidade do Reino e todo o seu ideal descrito no sermão do monte.
A famosa resposta de Jesus aos fariseus: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” pode ser assim parafraseada: “Cumpra os seus deveres de cidadãos, e cumpra os seus deveres para com Deus”. Em outras palavras, duas faces de uma mesma moeda. O próprio Paulo apelou para a cidadania romana no episódio em que ele e Silas foram arbitrariamente presos em Filipos (At 16.35-40). Como já disse este autor, em um de seus artigos: A vinda de Cristo é certeza de descanso e segurança, e não instrumento para impor medo e manipular os fiéis.
E mensagem positiva, e não negativa. E assegurar-se de que não é necessário entrar em pânico quanto ao amanhã. E ter como certo não precisar sair atrás de sensacionalismo, da especulação escatológica, à procura de ‘‘chifre em cabeça de cavalo”, com achados absurdos que não passam de fruto da imaginação criadora das pessoas. E ter a tranquilidade de não se alienar do mundo e viver segundo a mesma perspectiva de Cristo, que disse: “Meu pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando”. Assim, a verdadeira espiritualidade não dá as costas ao exercício da cidadania. Quando se fala em cidadania logo vem à mente a ideia de cargos eletivos mediante os quais os eleitos chegam ao legislativo e ao executivo. E óbvio que essa é uma forma legítima de participação. O mandato de governar a terra foi dado pelo próprio Deus ao homem no ato da criação (Gn 1.26-31).
Mas o exercício da cidadania vai muito além disso. Começa no bairro onde as pessoas vivem, até mesmo em ações que a própria igreja local desenvolve. Promover mutirões em que os membros, nas suas mais diferentes profissões, são acionados para prestar a sua ajuda à comunidade em determinado dia não só é uma atitude cidadã, com também se constitui em excelente via para a evangelização. Incentivá-los a participar das associações de moradores, das reuniões de pais de alunos e de outros movimentos legítimos da sociedade organizada permite que exerçam a espiritualidade onde a presença do sal e da luz é extremamente vital para a tomada de decisões importantes. Mas a postura cidadã não se resume apenas a esses aspectos. Ela transparece nos metrôs, trens e ônibus, quando os mais novos dão lugar às pessoas da terceira idade, e aqueles que não enfrentam nenhuma dificuldade abrem mão de seus assentos para as gestantes, as pessoas enfermas e os deficientes físicos. Ela transparece nas comunidades carentes, onde os moradores conscientes não jogam o lixo nas encostas, nem nos rios, nem o deixam espalhado nas vias públicas. Ela transparece nas ruas, quando os motoristas respeitam as faixas de pedestres, e as pessoas ajudam a quem tem dificuldade de atravessá-las. E aí que a espiritualidade se manifesta na dimensão mais humana da cidadania. Quando tais gestos têm origem no relacionamento com Deus através do altar do sacrifício, pela visão correta de que tudo quanto o ser humano faz só encontra sentido no Altíssimo (Sl 73.25), representam então a celebração da glória divina, o culto contínuo, 24 horas por dia, Aquele que tem o domínio sobre o Universo. Isso é espiritualidade.
A perspectiva pela qual todos os atos do crente devem ser praticados. Sim, isto é a igreja atuante no mundo. Sem essa premissa, incorre-se na ausência do amor, a primeira qualidade do fruto do Espírito (Gl 5.22), o que significa que qualquer ação está sendo feita sob motivação errada. A igreja, a espiritualidade e0 pós-modernismo. Finalmente, como viver a espiritualidade no mundo pós-moderno em que tudo é relativizado, onde o certo para um pode ser errado para outro? Convém ficar bem claro que interagir com a sociedade, nesta época da história, não significa que ela nutra simpatia pelas posições da igreja. Ao contrário, a cosmovisão prevalecente no mundo tem como fonte o naturalismo, que exclui a ideia do Deus criador, e permite a partir daí a desconstrução de todos os princípios que caracterizam a cultura judaico-crístã.
Charles Colson, em seu livro E Agora, Como Viveremos? Trata muito bem da questão ao afirmar, na verdade, a existência de um conflito permanente entre cosmovisões que só terá conclusão ao final da presente era, com a restauração de todas as coisas. Todavia, não cabe à igreja fazer como o avestruz e enterrar a cabeça na areia enquanto as horas passam. Muitos hão que entregam o tempo presente ao Diabo e se esquecem de que este tempo pertence à igreja. Haverá, sim, uma época futura, conhecida como a Grande Tribulação, em que o mundo experimentará a ira de Deus, a ira do Cordeiro, em que Satanás terá permissão divina para dominar as ações na Terra. Mas a História ainda não chegou lá.
A igreja tem, hoje, a oportunidade ímpar de influir em todos os segmentos para que se preservem as condições de vida, sob todos os aspectos, até que todas as intervenções históricas de Deus se realizem.
1) Neste mundo pós-moderno, a verdadeira espiritualidade não pode perder o seu paradigma, a centralidade de sua vivência quotidiana. Esta repousa em Deus, através de Jesus Cristo, onde está todo o significado da vida. Agostinho definiu bem isso ao afirmar: “Criaste-nos para ti, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em ti”. Não importa que o mundo pense diferente. Deus é o condutor da história e para Ele devem convergir todas as realizações do homem.
2) E preciso estar consciente de que a verdadeira espiritualidade se expressa quando se busca viver esses princípios em todas as dimensões da vida em comunidade. Eles não podem estar confinados às quatro paredes do templo. Repita-se: não há vida cristã estanque. As pesquisas mostram, por exemplo, que filhos criados em famílias saudáveis e bem estruturadas são menos propensos às drogas e, consequentemente, ao crime. Por que não lutar, então, para que os homens públicos não subvertam esse princípio e mantenham incólumes as leis que estabelecem a família tal como a Bíblia ensina
3) Deus nos pôs no mundo não para ficar a reboque, mas para, como Igreja, fazer a história. Vamos fazê-la bem-feita e deixar um bom rastro para aqueles que nos seguem. Um bairro, uma cidade, um estado ou um país que crescem à sombra destas verdades terão menos violência, melhor educação e grande prosperidade. Celebremos a glória de Deus nos templos, através de expressões de alegria e louvor ao Senhor, mas vivamos a espiritualidade verdadeira em todas as dimensões de nossa vida. Isso se dá através mediante o permanente exercício da disciplina cristã.
XIII. A Igreja e a disciplina
O ambiente que cerca a igreja, nos dias de hoje, é diametralmente distinto do contexto da igreja primitiva. Naquela época, mesmo fora dos limites da fé cristã, havia o pressuposto de valores universais como norma para a conduta humana. Os questionamentos não tinham a dimensão atual. Hoje, ao contrário, predomina a visão relativista, particular, pessoal, que não admite nem por hipótese a ideia de que existam verdades absolutas. Não passa pela cabeça do homem pós-moderno, de modo geral, pensar na existência de valores, princípios, comuns a todos os seres em qualquer parte do planeta, não importa a herança cultural. O que prevalece é essa babel ideológica, fragmentada e difusa, onde cada um assenta o tijolo da sua própria crença para dar continuidade à construção do velho e surrado humanismo babilônico. Não há lugar para a verdade de Deus. O entendimento pessoal determina a forma de se ver o mundo e à luz disso segue o homem o seu próprio caminho. Esse é o quadro em que se insere a igreja na pós-modernidade. A situação se agrava porque ao peso da forte pressão social tais concepções se introduzem nos limites da fé e permitem que, em muitos casos, se perca a essência dos fundamentos para em seu lugar valorizar formas, priorizar superficialidades, tornar a mensagem apenas um instrumento motivacional, substituindo a pregação bíblica, transformar cultos em programas de entretenimento e abarcar toda sorte de liturgias, algumas esdrúxulas, sem qualquer preocupação com o conteúdo. Afinal, o que isso tem a ver com a disciplina na igreja atual? Tudo. A ânsia de tornar as igrejas atrativas e “amigáveis”, como defendem os líderes dessa corrente, leva à liberalização teológica. Além disso, abre caminho para concessões no campo do comportamento e flexibiliza o papel da disciplina sob o argumento de que ela afugenta as pessoas e faz com os membros de uma igreja com fundamentos ortodoxos procurem outras menos exigentes ou com “a porta larga”. Todavia, gostemos ou não, a disciplina é um pressuposto em qualquer área da vida, desde o atleta que se prepara para a maratona àquele que deseja viver a vida cristã segundo os padrões da Palavra de Deus (1 Co 9.24-27).
Este o sentido da advertência de Paulo a Timóteo: “Exercita-te a ti mesmo em piedade” (I Tm 4.7),
A palavra que Paulo usou para “exercita-te” (gr. “gytnnazo”) se refere ac treinamento feito pelos atletas no ginásio grego. O substantivo “gymnasia” (treinamento ou disciplina) presente no versículo 8 é a raiz da palavra “ginásio”.
Em outras palavras, sem a disciplina a caminhada está sujeita ao fracasso, e a travessia da linha de chegada impossível. O caráter preventivo da disciplina. Precisamos, antes de tudo, compreender o que significa disciplina. Uma de suas peculiaridades é o seu caráter preventivo. Isso tem a ver com ensino, instrução, prevenir contra o erro à luz das Escrituras, e não simplesmente com a imposição de um conjunto de regras que representam a tradição de homens, como advertiu o apostolo Paulo (Cl 2.20-23). Não que inexista o caráter normativo da disciplina, como veremos adiante. Mas o extremo do legalismo com sua carga de condicionamentos humanos e aparente piedade é apenas o reflexo do farisaísmo e da hipocrisia.
Assim, o ensino com fundamentação bíblica é primordial na era pós-moderna. Isso requer a ênfase permanente nos princípios como o correto padrão de aferição para o dia-a-dia da vida cristã. Não basta dizer: “Isto pode, aquilo não”; impõe-se trabalhar com a igreja o embasamento doutrinário preventivo, com o emprego da genuína exegese, que dê ao crente a capacidade de agir com segurança, sensatez, espiritualidade e compromisso com Cristo diante de cada situação de sua caminhada.
A disciplina preventiva precisa levar em consideração o fato de vivermos na chamada sociedade do conhecimento, onde o acesso às informações é algo extremamente aberto, acessível, oriundo de múltiplas fontes, mas que chega de forma aleatória, fragmentada, com a probabilidade de gerar muitas distorções na mente humana. Enquanto, nos tempos antigos, a palavra de alguém que tivesse conhecimento um pouco acima da média era lei até porque a grande maioria não dispunha da mesma autoridade intelectual para exercer o senso crítico, na sociedade pós-moderna é diferente.
As pessoas questionam, particularizam e querem respostas que não só as convençam, mas que sejam coerentes com a lógica da razão. Nos tempos idos, a autoridade era também respeitada. Hoje está sendo solapada em todas as esferas. O u seja, quem exerce cargo de liderança, sobretudo no meio eclesiástico, não pode se valer apenas da força de sua função para de maneira autoritária passar aos liderados o que precisa ensinar. Isso quer dizer que a disciplina preventiva na igreja da pós-modernidade implica em mostrar de forma consistente e dialogai que os princípios bíblicos não são extemporâneos, ultrapassados; antes, fazem pleno sentido na sociedade pós-moderna (Rm 12.3-8). E enfrentar os “por quês” com respostas bíblicas e bem expostas, com toda a clareza necessária; e evitar evasivas que confundem e tiram a credibilidade de quem exerce esse papel. Um ponto primacial é que os princípios bíblicos são fruto da revelação de Deus ao homem (2 Tm 3.10-17).
E questão fora de dúvida para os convertidos a Cristo.
Alguns, todavia, forçados pela sociedade secularizada, acabam limitando sua extensão à vida religiosa, como se não houvesse qualquer conexão entre eles e as demais áreas da existência humana.
Chegam a afirmar que “outras religiões” têm também as suas “verdades exclusivas” de modo que, por isso mesmo, não se pode permitir que interfiram na vida secular de cada um. Cria-se então uma dicotomia, um gueto, em que os princípios bíblicos aplicados através da disciplina preventiva ficam restritos a um compartimento o da fé enquanto os demais ficam excluídos de sua interferência. Basta ir à igreja pelo menos uma vez na semana para cumprir com a obrigação religiosa. O resto é por conta da pessoa e ponto final. Essa é uma das formas mais sutis de o Diabo desacreditar a fé e facilitar seu predomínio não só no mundo, mas também sobre as ações dos crentes. Os princípios bíblicos têm, de fato, origem na Revelação e exatamente por isso a sua fonte são ao mesmo tempo coerentes com toda a verdade que se manifesta no mundo cotidiano. A revelação de Deus não é absurda, e Ele não impõe nenhum absurdo ao ser humano.
As vezes, é preciso usar a estratégia empregada pelo apóstolo Paulo em Atenas, que, ao invés de partir da Revelação para a filosofia, fez o caminho inverso. Partiu da filosofia para a Revelação (At 17.15-34).
Em outras palavras, significa mostrar que as verdades inerentes ao dia-a-dia, seja na vida social, seja na vida científica, seja na vida comportamental, aquelas questões que a própria consciência admite como verdadeiras por ver coerência em suas formulações, tudo isso expressa por fim aquilo que os princípios da Revelação ensinam como a grande verdade de Deus. Assim pensavam os reformadores. Para eles, toda verdade, em qualquer campo do saber humano, precisava ser considerada como a verdade de Deus. Portanto, a igreja tem de dar primazia ao magistério cristão e usar as ferramentas adequadas para sempre aplicar a disciplina preventiva mediante a frequente e sistemática instrução bíblica.
O caráter normativo da disciplina. A disciplina tem também caráter normativo. Já vimos que a igreja é tanto uma instituição divina como humana. Mas ambas são indissociáveis. Em seu aspecto terreno, dispõe de personalidade jurídica e se obriga a explicitar em estatuto e regimento interno os seus princípios organizacionais. Em seu aspecto divino se submete à Bíblia Sagrada como seu estatuto maior, de onde derivam todas as normas aplicadas em sua peregrinação histórica, inclusive quanto à sua forma de organização. Assim, para usar a linguagem jurídica, existem as chamadas “cláusulas pétreas” da fé que constituem o caráter normativo da disciplina. São questões que tratam da inserção do novo crente na comunidade da fé, seus compromissos com a igreja e sua identificação com os princípios que agora norteiam a sua vida. São os imutáveis referenciais extraídos das Escrituras para que possa seguir em sua trajetória até alcançar o céu.
A Bíblia sempre será a fonte da disciplina normativa, sem qualquer adendo ou concessão aos que trazem para dentro das fronteiras eclesiásticas o conceito pós-moderno que despe o texto do seu significado intrínseco e alimenta a tese de que cada um tem o direito de livremente interpretá-lo e dar a ele o seu próprio significado. Ela será a base, o parâmetro, a verdade absoluta, com significado autônomo, para tudo quanto vier a ser decidido no âmbito da igreja (2 Pe 1.19-21).
Nunca é demais relembrar que estaremos incorrendo em erro se sobrecarregarmos os crentes com tradições humanas que mais expressam alguma herança cultural (ou mesmo religiosa) do que propriamente algum princípio bíblico. Não nos cabe tornar o caminho mais estreito do que já é.
É indispensável, por outro lado, explicitar em documento próprio as normas adotadas para que haja ciência quanto aos direitos, deveres e privilégios de quem se torna membro da igreja local por ser característica da era pós-moderna as pessoas não atentarem para princípio algum, mas praticarem o que “bem lhes parece aos próprios olhos”. A clareza da linguagem é de suma importância para que não pairem dúvidas e cada ponto reflita em verdade os princípios bíblicos, e não o desejo particular de alguém ou de um grupo. Alguns dirão: “A Bíblia por si só basta”. A premissa é correta, mas o Concilio de Jerusalém, lá atrás, nos primeiros anos de vida da igreja, à luz das Escrituras, expediu cartas às igrejas de então com as normas a serem observadas quanto aos problemas ali levantados e discutidos (At 15.1-32). Em outras palavras, não há nenhum erro ter a disciplina normativa explicitada em documento para que os crentes saibam como proceder. A classe de discipulado é o ambiente ideal para que a disciplina normativa seja passada em primeira mão aos que estão chegando à igreja local através da conversão.
É conveniente, inclusive, que seja o pastor o responsável por esse primeiro contato com os novos irmãos. Os crentes que se transferem de outras denominações deveriam também frequentar uma classe semelhante antes de serem recebidos. Isto se deve a várias razões:
1) Geralmente (toda regra tem exceção), são pessoas que portam algum tipo de insatisfação e estão à procura da igreja perfeita. Como não a encontram, vivem a síndrome do beija-flor. Não ficam em lugar algum.
2) Antes de se tornarem membros é justo e necessário que conheçam a sua nova casa espiritual, como funciona, a liturgia, as normas, o tipo de serviço que ali se presta ao Senhor, para que então se definam, se ajustem ao novo ambiente e estejam conscientes de sua nova responsabilidade. O documento a que aludimos há pouco é também conhecido como Declaração de Propósitos e já é empregado em algumas igrejas. Não só o crente que se submete ao batismo em águas, mas o que se transfere de outra denominação, ou mesmo de outra igreja da mesma fé e ordem, após concordar com os seus termos, é convidado a assiná-lo em solenidade especial, juntamente com o pastor, para só então ser aceito como membro. Qual a importância desse compromisso? E que a igreja, conforme o Código Civil, desfruta da liberdade de estabelecer a sua própria estrutura de funcionamento, não cabendo nenhuma interferência do estado em suas decisões. Ela é soberana em questões de fé. Mas na era pós-moderna o que mais as pessoas querem é lutar por direitos, sem demonstrar a mínima preocupação com deveres. A Declaração de Propósitos, que inclui também o Estatuto e o Regimento Interno, protege a igreja contra aqueles que, movidos pelo espírito de Jezabel, tornam-se rebeldes e são até capazes de levar a igreja às barras dos tribunais contra alguma decisão com a qual não concordam. Pelo seu conteúdo, a Declaração de Propósitos se configura como um pacto em que as partes estão de acordo com as normas contidas, sendo, portanto, uma peça de defesa em casos extremos. O caráter corretivo da disciplina. A disciplina tem, finalmente, caráter corretivo. Ela visa corrigir rumos, trazer de volta ao devido lugar, fazer com que a verdade prevaleça, acertar o que está errado. Mas os tempos de hoje não favorecem a postura autoritária muito comum em épocas não tão distantes. Já não é mais possível chegar e dizer: “o que eu determino está determinado. Ninguém tem o direito de reclamar ou questionar”.
É bom lembrar que, além de ser errada, do ponto de vista bíblico, o povo geralmente já não aceita essa forma de liderança. Então qual o caminho para aplicar a disciplina corretiva? Ele se constitui de três simples passos: mostrar onde está o erro, explicar porque está errado e ensinar como fazer para corrigir o erro. O problema não pode ser tratado como se o líder estivesse impondo a sua vontade pessoal, o que ele quer, mas aplicando os princípios bíblicos, que, como já foi dito, são coerentes com o dia-a-dia das pessoas. É a partir daí que elas poderão avaliar o seu modo de vida no sentido mais amplo para ver o que precisa ser corrigido ou aperfeiçoado. Só assim terão condições de aplicá-los a cada situação da vida e não só àquelas que são consideradas “pecados”.
Vale também ressaltar que a disciplina corretiva não tem o caráter de lançar fora, mas sempre restaurar, trazer de volta ao aprisco. Mesmo quando há necessidade de se tomar alguma medida disciplinar restritiva, como a suspensão de determinadas atividades ou mesmo o desligamento, o objetivo será sempre restaurar, e não lançar no abismo, como no episódio relatado por Paulo em ambas as cartas aos coríntios (I Co 5.1-5; 2 Co 2.1-8). Por fim, duas metáforas empregadas no Salmo 23 permanecem plenas de significado para a disciplina na igreja da pós-modernidade: a vara e o cajado. Com a primeira o pastor ensina, expõe a Palavra com integridade, prepara e aperfeiçoa. Mostra o que Deus quer para o seu rebanho. Com a segunda, puxa a ovelha que está à beira do abismo e a coloca de volta na trilha que leva aos pastos verdejantes e às águas tranquilas. Uma igreja bem disciplinada entregar-se-á com alegria e dedicação à sua tarefa e terá, como veremos a seguir, um forte comprometimento com a missiologia urbana.
XIV. A Igreja e a missiologia urbana
Outro aspecto importante da vida eclesiástica tem a ver com o processo de urbanização do mundo, uma realidade desafiadora que exige pronta e contínua resposta da igreja como agente do Reino de Deus na Terra.
O fluxo migratório constante dos países pobres para os países mais desenvolvidos e do interior para os grandes centros, em busca de melhores oportunidades, aliado a outros fatores da vida pós-moderna, indica com segurança que nos próximos anos a maior parte da população do planeta estará vivendo nas grandes cidades, transformadas em metrópoles e megalópoles.
A estratégia urbana de Paulo. Para se conhecer como a igreja pode desempenhar bem o seu papel como comunidade terapêutica na urbe pós-moderna, nada melhor do que descobrir a metodologia empregada pelo apóstolo Paulo em suas viagens missionárias.
A primeira observação é que ele procurava instalar-se nos grandes centros, onde a mensagem seria mais bem repercutida para então irradiar-se pelas regiões adjacentes (At 13.4-6,13,14). Obediente ao plano divino de universalizar o evangelho mediante a transição da igreja para o mundo gentílico, o apóstolo usou a mesma estratégia quando transpôs os limites da Ásia e alcançou as fronteiras europeias através da Macedônia, atual norte da Grécia (At 16.11,12). Filipos foi a primeira cidade aonde chegou e na qual permaneceu por alguns dias. Dali, partiu imediatamente para Tessalônica, a capital da província (At 17.1), para depois, passando por Beréia, alcançar Atenas (At 17.15), centro dos grandes conhecimentos filosóficos, de onde seguiu até Corinto, capital da Acaia, atual sul da Grécia. Em todos estes casos, os grandes centros, como Tessalônica, Acaia e Corinto, foram os locais estratégicos onde o evangelho começou a ser anunciado. O apóstolo Paulo sabia utilizar-se, também, de estratégias adequadas para cada realidade.
O seu próprio perfil é o testemunho de que Deus escolhera a pessoa certa para aquelas circunstâncias. Nascido em Tarso, uma das principais cidades do império romano, pertencia a uma família judaica e cresceu sob a influência da cultura helênica, o que lhe dava mobilidade para transitar livremente entre as fronteiras da época. Em Filipos, sua primeira iniciativa foi buscar um lugar para a oração, fora da cidade, onde pôde falar às mulheres ali reunidas (At 16.13,14), entre as quais Lídia, empresária bem-sucedida no ramo de púrpura.
Não foi por acaso que as primeiras pessoas a ouvirem o evangelho na Europa tenham sido as mulheres. Elas são, por natureza, mais sensíveis e sempre mais dispostas a lutar pelas causas que assumem. Sem dúvida, tiveram papel fundamental na divulgação do Evangelho. Em Atenas, famosa pelos grandes embates filosóficos, as artes e os deuses da mitologia grega, Paulo utilizou como ponto de contato a sua religiosidade para apresentar aos atenienses a mensagem sobre o Deus desconhecido, com resultados imediatos (At 17.15-34). Em cada realidade da vida urbana, uma estratégia específica. Por conseguinte, o apóstolo estava consciente da batalha no plano espiritual em relação às cidades. Sua carta aos efésios é prova disso (Ef 6.10-20). Nessa cidade, localizada hoje na Turquia, prestava-se culto a Diana, uma das deusas do panteão romano. Em Filipos, a artimanha de Satanás foi tentar envolver Paulo com elogios ardilosos para manter a credibilidade demoníaca intacta entre os filipenses. A ser desmascarado, era preferível a Satanás elogiar, dizendo a verdade a contragosto, e assim continuar desfrutando da simpatia do povo. Mas o apóstolo já estava preparado, pois antes de qualquer outra coisa, em solo europeu, fez uso da arma da oração para enfrentar o confronto no nível espiritual (At 16.13,16-18). O desafio moderno da urbanização. A crescente urbanização do mundo, com o inchamento das grandes cidades, metrópoles e megalópoles, como é o caso do Rio de Janeiro, São Paulo, Cidade do México, Tóquio e outras do mesmo porte, geram desafios que devem ser encarados com tenacidade. O primeiro é a diversificação cultural.
Assim como Paulo era de origem judaica, nasceu em Tarso e sofreu a influência helênica, esta era também a característica cultural do império romano. O latim era o idioma oficial, mas o grego predominava em suas fronteiras entre povos de raízes culturais bem distintas. De igual modo, os centros urbanos, hoje, não são culturalmente homogêneos. Há uma diversidade enorme de “tribos”, termo preferido pela juventude pós-moderna, culturas e tradições. Outro desafio é a falta de oportunidades sociais, pois a grande maioria não consegue sequer chegar à base da pirâmide social e acaba vivendo à margem do processo, nos subempregos, entregue às drogas, à mendicância, à prostituição, ao banditismo e a toda sorte de violência. Por isso, o alto índice de favelização, principalmente no Brasil.
O materialismo é, também, uma característica da urbe. Se, de um lado, a luta pela sobrevivência leva os mais pobres a pensar apenas no que comer, isto é, sem qualquer tempo para assuntos espirituais, por outro, os endinheirados agem como o rico da parábola: os bens materiais lhes bastam (Lc 12.16-21). Há, também, o desafio das novas tendências sociais, que alteram valores sagrados para a saúde moral da sociedade. Com a proliferação do divórcio, o conceito de família, hoje, na sociedade distanciada de Deus, não é o mesmo da Bíblia. Isto sem falar na incidência de outras circunstâncias como a secularização, a defesa do aborto, o homossexualismo, o relacionamento sexual livre entre os jovens, sem o compromisso do matrimônio, e outras situações que tornam os defensores dos padrões bíblicos aparentemente antiquados e ultrapassados. O avanço das seitas, por outro lado, se constitui na outra face do desafio da vida urbana. Elas apareceram na época de Paulo (2 Tm 2.14-19; 3.6-9) e nos anos subsequentes do Cristianismo, mas em nenhum outro tempo da história tiveram expansão considerável como nos dias atuais. Por último, entre outros desafios, está o da solidão cósmica. Apesar da multidão que o cerca, e da imensa selva de pedra na qual vive, o massacre constante dos turbilhões de problemas da grande cidade torna o indivíduo extremamente só, deprimido e perdido no cosmos.
As estratégias da igreja para o mundo urbano. O quadro há pouco pintado retrata a vida urbana em cores pálidas. Ele é mais forte. Mas a igreja consciente de suas responsabilidades e capacitada pelo poder do Espírito Santo há de estar pronta para ser obediente à visão de Deus e transpor todas as barreiras para ser relevante com a mensagem do Evangelho. Assim como Paulo foi obediente ao chamado divino (At 16.9,10; 26.19,20), a igreja igualmente não pode fugir da realidade das grandes cidades, metrópoles e megalópoles, pois aí estará praticamente a maior parte da população mundial nos próximos anos. Por outro lado, somente a igreja que dispor de visão multiministerial, assim como a sabedoria de Deus é multiforme, terá condições de estar presente em todas as circunstâncias que demandam sua ação na vida urbana. Em sã consciência, as reuniões tradicionais da semana, com seu inestimável valor, não são suficientes para confrontar a vida paradoxalmente opulenta e ao mesmo tempo degradante da urbanização. Visão multiministerial significa diversidade de ministérios atuantes na igreja local para alcançar todos os segmentos sociais. Das crianças aos mais idosos, todos precisam estar mobilizados em todas as frentes menores carentes, drogados, prostitutas, terceira idade, empresários, profissionais liberais a fim de que se cumpra através da igreja o ministério da reconciliação (2 Co 5.18). Cabe à igreja, portanto, entender que o fato há pouco descritos, são reflexos de ações demoníacas sobre as cidades, que se intensificarão cada vez mais à medida que se aproxima a volta de Cristo. Assim como Paulo buscou um lugar para a oração antes de enfrentar a batalha, a igreja só terá êxito em sua missiologia urbana repreendendo os espíritos que atuam no mundo invisível para então conquistar as cidades para Cristo. Esta é, também, uma igreja preparada para o desafio das missões transculturais.
XV. A Igreja e o destino final
A Igreja peregrina anseia pela Volta de Jesus. Sem entrar no mérito da Escatologia Bíblica, que também faz parte desta Teologia Sistemática Pentecostal, esse será o glorioso momento em que os molhos da grande colheita serão apresentados diante do Senhor. A transitoriedade histórica da igreja terá sido consumada, e ela estará para sempre no gozo do porvir. Ela tem rumo, e o seu destino final também faz parte do projeto que Deus desenvolveu para ela. Nossa morada permanente não é aqui, pois, como Abraão, esperamos a cidade cujo Artífice e Construtor é Deus (Hb I I . 10). Resta-nos tão somente ser fiéis até ao fim, para que, como parte da Igreja a Assembleia Universal dos Santos, tomemos posse em definitivo da herança a nós reservada.
As recomendações da Bíblia quanto a isso são de zelo, vigilância, fidelidade e perseverança para que não fiquemos à beira do caminho ou sejamos apanhados de surpresa no dia da Volta de Jesus. Consolemo-nos, portanto, uns aos outros com estas palavras: “Ora, vem, Senhor Jesus!” (Ap 22.20).
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